PROTEUS EDUCAÇÃO PATRIMONIAL 22 ANOS

PROTEUS EDUCAÇÃO PATRIMONIAL 22 ANOS

quinta-feira, 7 de janeiro de 2010

PAISAGEM CULTURAL




CARTA DA SERRA DA BODOQUENA
Carta das Paisagens Culturais e Geoparques



“... a terra das águas belas...”
(Visconde de Taunay, A retirada da Laguna, 1867)



Apresentação

Entre os dias 19 e 21 de setembro de 2007 realizou-se em Bonito, no estado de Mato Grosso do Sul, o Seminário Serra da Bodoquena/MS – Paisagem Cultural e Geoparque, promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), por intermédio de sua 18ª Superintendência Regional - Mato Grosso do Sul, com apoio da Prefeitura Municipal de Bonito e do Instituto de Meio Ambiente de Mato Grosso do Sul (IMASUL) e com a participação de pesquisadores, técnicos e profissionais do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), Procuradoria Federal, Serviço Geológico do Brasil (CPRM/SP), Fundação de Cultura do Estado, Prefeitura Municipal de Bodoquena, Prefeitura Municipal de Porto Murtinho, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Universidade Estadual do Cariri, Ceará (URCA), Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (USP), Universidade Estadual de Ponta Grossa, Paraná, Instituto Superior de Ensino da Fundação Lowtons de Educação e Cultura (FUNLEC), Programa de Desenvolvimento do Turismo da Região Sul (PRODETUR/SUL-MS) e do 10º RC Mec-RAJ/CMO-Exército Brasileiro.
O Seminário teve por objetivo promover discussões teóricas, técnicas, científicas e administrativas com as diferentes instituições do Poder Público e da comunidade interessados na preservação da Serra da Bodoquena como Paisagem Cultural sob um ponto de vista predominantemente científico. Palestras proferidas por diversos especialistas abordaram questões relativas à Paisagem Cultural e aos geoparques, resultando em profícuas discussões e encaminhamento de propostas para a consideração da Serra da Bodoquena como Paisagem Cultural brasileira pelo IPHAN e Geoparque pela Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura (UNESCO).
Elaborou-se então este documento, a Carta da Serra da Bodoquena - Carta das Paisagens Culturais e Geoparques, com o objetivo de definir novos mecanismos para o reconhecimento, a defesa, a preservação e a valorização da Serra da Bodoquena, bem como de outras paisagens análogas existentes em território nacional.

Considerações
A elaboração da Carta da Serra da Bodoquena – Carta das Paisagens Culturais e Geoparques levou em consideração:
- a Constituição da República Federativa do Brasil, que considera o Patrimônio Cultural Brasileiro não apenas na dimensão de bens isolados, mas, de uma maneira ampla, procura reuní-los e percebê-los de forma conjunta e integrada, com vistas ao estabelecimento de ações protetoras democráticas e formas de uso democráticas, compartilhadas entre os diversos responsáveis do Poder Público e da sociedade civil;
- o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), autarquia federal constituída pelo Decreto nº 99.492, de 3 de setembro de 1990, e pela Lei nº 8.113, de 12 de dezembro de 1990, com base na Lei nº 8.029, de 12 de abril de 1990, vinculado ao Ministério da Cultura e o Decreto 5.040/2004, que define como finalidade institucional do IPHAN proteger, fiscalizar, promover, estudar e pesquisar o Patrimônio Cultural Brasileiro, coordenando a execução da política de preservação, promoção e proteção do Patrimônio em consonância com as diretrizes do Ministério da Cultura;
- o Decreto-Lei nº. 3.551/2000 que institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial e do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial, que visa à implementação de políticas específicas de inventário, referenciamento e promoção do Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro;
- a assinatura pelo Brasil, em 2003, da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco, documento que estabelece a cada Estado-Membro a adoção das medidas necessárias para garantir a salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial presente em seu território, bem como a garantia da participação mais ampla possível das comunidades, grupos e indivíduos que criam, mantém e transmitem esse patrimônio, associando-os ativamente à gestão do mesmo;
- a Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos (SIGEP), que confere importância à serra da Bodoquena devido à singularidade de seus registros geológicos e paleontológicos, que permitem uma caracterização e estudos de processos geológicos-chave regionais e globais;
- a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, que em 1992 estabeleceu a agenda comum dos Estados-Membro (Agenda 21) como orientada para o desenvolvimento auto-sustentável e em harmonia com o meio-ambiente e recursos naturais;
- a Declaração dos Direitos à Memória da Terra, de 1991, que, sob os auspícios da UNESCO sublinha a preocupação com a proteção da herança geológica da Terra e seu uso para a Educação e a Ciência;
- a Decisão da UNESCO (161 EX/ Decisions 3.3.1), que conclama seus Estados-membro a envidarem esforços no sentido da proteção e promoção da história geológica da Terra;
- a criação pela UNESCO da Rede Mundial de Geoparques em 2004, que estabelece a herança geológica da Terra como objeto de proteção a ser integrado a uma estratégia de fomento ao desenvolvimento social e econômico sustentável nos territórios;
- a equidade de valor dada pela UNESCO entre Reserva da Biosfera, Patrimônio da Humanidade e Geoparque e o impacto positivo dos geoparques nas estratégias de preservação dos patrimônios envolvidos e na sustentação social e econômica das comunidades locais;
- a Carta de Bagé, ou Carta da Paisagem Cultural, de 2007, que define as paisagens culturais como os mais representativos modelos de integração e articulação entre todos os diferentes bens que constituem o Patrimônio Cultural brasileiro;
- os graus diversos de risco físico a que a serra da Bodoquena encontra-se atualmente submetida, que se constituem desde o uso inadequado do solo e dos recursos hídricos à extração mineral desordenada, passando pela prática abusiva de queimadas, atividades irregulares de carvoarias, uso indiscriminado de agrotóxicos, a destruição de matas ciliares e o perigo representado pela possibilidade de atividades turísticas mal planejadas;
- o risco cultural a que as comunidades da serra da Bodoquena encontram-se progressivamente submetidas, caracterizado principalmente pela exploração do artesanato e do saber-fazer indígena associada à ausência de um reconhecimento coletivo da importância desta produção tradicional, o que traz, por conseqüência, o reforço de uma continuada falta de expectativa econômica daquelas comunidades, forçando-as a um nefasto êxodo em direção às periferias das cidades da região;
- os graus diversos de risco a que a diversidade biológica da serra da Bodoquena é submetida com a diminuição e deterioração dos habitats causada pela expansão das fronteiras agrícolas, pela introdução de espécies exóticas e pela biopirataria, principalmente nas áreas indígenas;

A Serra da Bodoquena e seu Patrimônio
A Serra da Bodoquena reúne conjunto ímpar de feições geológicas, hídricas, climáticas, paleontológicas, arqueológicas e históricas de extraordinário interesse científico e rara beleza natural, o que lhe confere condições para vir a integrar a Rede Mundial de Geoparques criada pela UNESCO em 2004. O objetivo desta nova e muito solicitada categoria de reconhecimento internacional é a preservação e a conservação de elementos geológicos e paleobiológicos que testemunham a formação da Terra e a existência de formas de vidas pretéritas.
Um Geoparque constitui-se numa rede de locais de interesse e relevância, os Geotopos, pelos quais se entende a evolução geológica da região e aos quais se justapõem valores ecológicos, arqueológicos, paleontológicos, históricos, culturais e de lazer. Apresenta uma delimitação física definida e deve prioritariamente aliar desenvolvimento sustentável local, divulgação de conhecimento e preservação. Sendo uma chancela internacional, não se confunde com categorias jurídicas de conservação, embora, em certos casos, possa e deva se justapor a elas e não acarreta, portanto, a necessidade de desapropriações.
O que torna a região da Serra da Bodoquena de importância singular e passível de vir a constituir um Geoparque é a predominância de rochas carbonáticas e a conseqüente formação de cavernas e rios de águas límpidas, nos quais se desenvolvem conjuntos de formações calcárias conhecidas como tufas, além de inúmeras áreas turísticas decorrentes predominantemente desta condição. A formação dos calcários que sustenta a serra remonta ao final do Neoproterozóico, no Período Ediacarano, e configura uma série de registros geológicos de bruscas mudanças ambientais pelas quais passou o planeta, inclusive com depósitos sedimentares glaciais, mudanças que podem ter relação com a diversificação faunística da tão estudada e controversa “Explosão de Vida Cambriana”.
A presença dessas rochas carbonáticas e das cavernas a elas associadas permite ocorrências fossilíferas cujas idades variam do Proterozóico até o Pleistoceno. Nelas se destaca o mais antigo metazoário da América do Sul, além de significativa diversidade de fósseis da megafauna pleistocênica neste continente.
A serra da Bodoquena encontra-se, ainda, na sobreposição de duas Reservas da Biosfera, a Reserva da Biosfera do Pantanal e Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, bioma da qual contém o compartimento mais ocidental do Brasil.
Por todas estas razões o território da serra da Bodoquena vem sendo objeto de atenção legal e científica em diversos âmbitos:
- é onde se localiza a primeira e até agora única Unidade de Conservação integral federal no estado de Mato Grosso do Sul, o Parque Nacional da Serra da Bodoquena, criado em 21 de setembro de 2000 e que envolve os municípios de Bonito, Bodoquena, Jardim e Porto Murtinho, perfazendo 76.481 hectares;
- duas de suas feições encontram-se sob salvaguarda do IPHAN: os monumentos naturais das grutas do Lago Azul e de Nossa Senhora Aparecida, devido aos seus excepcionais valores paisagísticos, cênicos e científicos (inscrição 074 do Livro do Tombo Arqueológico, Etnográfico e Paisagístico, sob o Processo nº. 0979-T-1978);
- as grutas do Lago Azul e de Nossa Senhora Aparecida são consideradas Monumento Natural Estadual por meio do Decreto Estadual nº. 10.394;
- a serra da Bodoquena encontra-se inscrita no SIGEP (Comissão Brasileira de Sítios Geológicos e Paleobiológicos) como o Sítio nº. 34 – Tufas Calcárias da Serra da Bodoquena, cujos estudos e pesquisas possibilitam interpretações paleoclimáticas e paleohidrológicas fundamentais para o entendimento da evolução da Terra;
- existem diversas Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPN) na região da serra da Bodoquena, com ampla diversidade biológica ainda em estudo;
- a região da Bodoquena é palco de uma multiplicidade de aspectos culturais relativas aos atuais povos indígenas que nela residem, como os Terena, Kinikináo e Kadiwéu, sendo estes os últimos representantes da célebre nação Guaicuru, de presença constante nos relatos da ocupação desta porção do território brasileiro;
- a serra da Bodoquena conta com diversos sítios arqueológicos pré-históricos e históricos, dos quais sobressaem os relacionados ao episódio Guerra do Paraguai, a Retirada da Laguna. Desde 1999 o Exército Brasileiro vêm identificando, levantando e refazendo a trilha percorrida pelas tropas imperiais mediante realização regular de marcha cívico-cultural;
- na região manifestam-se modos de vida tradicionais da população local, nos quais se destacam a culinária e o trabalho artesanal.




CARTA DAS PAISAGENS CULTURAIS E GEOPARQUES
Paisagens culturais e geoparques em última instância dizem respeito mais às pessoas que às coisas, uma vez que as premissas de conservação e preservação atendem à necessidade humana fundamental do conhecimento e do pertencimento a uma cultura e a um lugar.
Por isso, e por todas suas características físicas e antrópicas, materiais e imateriais, biológicas e culturais, a serra da Bodoquena deve ser objeto de atenção especial por parte das entidades públicas e civis dos municípios, Estado e União, devendo receber minimamente o cumprimento das diretrizes relacionadas a seguir:

Artigo 1 – O patrimônio fossilífero é um bem inigualável para o entendimento das formas de vida pretéritas e a construção do conhecimento da evolução biológica do planeta e, conseqüentemente, do ser humano, constituindo-se também em matriz da produção de manifestações culturais de caráter imaterial. Assim, constitui-se imperativo constitucional a preservação pelo IPHAN de depósitos fossilíferos que contemplem sítios paleontológicos de reconhecido valor cultural (inciso V do artigo 216 da Constituição Federal) para o desenvolvimento de ações de proteção, fiscalização, promoção e estudos deste patrimônio. Cabe ao IPHAN também, em regime de urgência, desenvolver ações e mecanismos visando à geração e a incorporação de metodologias, normas e procedimentos de preservação do patrimônio paleontológico, difundindo conhecimento e exercendo seu poder de polícia administrativa.

Artigo 2 – Uma política eficaz de conservação e preservação dos patrimônios abarcados pelos conceitos de Geoparque e Paisagem Cultural na Bodoquena deverá levar em consideração a complementação e o reforço advindo de aparatos legais de âmbitos diferentes: municipal, estadual e federal. Deverá ser, portanto, enfatizada a relação inter-institucional dos entes federados como ferramenta básica para uma política continuada de preservação.

Artigo 3 – A política de conservação e preservação relativa à Paisagem Cultural e ao Geoparque na serra da Bodoquena deverá buscar ao máximo a integração entre os múltiplos atores envolvidos, como comunidades locais, organizações não-governamentais, universidades, institutos de pesquisa, escolas e o setor turístico e imobiliário, dentre outros, para que o entendimento da importância da Bodoquena seja homogeneamente produzido e propagado, incrementando as ações do poder público e dinamizando a sustentabilidade econômica da região.

Artigo 4 – A vocação principal do geoparque deverá ser a do estabelecimento de condições sustentáveis de desenvolvimento social e econômico, as quais têm como premissa o acesso ao conhecimento científico como parte integrante da educação em seu sentido mais amplo.

Artigo 5 – O Geoparque deverá ser considerado em sua condição de contexto ideal para a promoção das diversas conexões entre o Patrimônio Cultural (material, arqueológico, paleontológico, geológico, histórico, natural e imaterial) e os múltiplos saberes expressos no espaço da serra da Bodoquena. Assim, no Geoparque ao mesmo tempo em que a leitura da paisagem feita pela Ciência incluirá as páginas elaboradas há séculos pelas comunidades locais, a visão de mundo destas comunidades incorporará o chamado pensamento científico ao seu sempre rico imaginário.

Artigo 6 – A condição da serra da Bodoquena como o compartimento de Mata Atlântica mais ocidental do Brasil deverá ser salientada na concepção e delimitação espacial do geoparque.

Artigo 7 – A presença de relatos e sítios históricos relativos ao episódio da Retirada da Laguna, Guerra do Paraguai, e da presença indígena preservada em sítios arqueológicos da região da serra da Bodoquena deverão ser levadas em consideração na pesquisa e seleção tanto da Paisagem Cultural como de possíveis geotopos para o geoparque.

Artigo 8 – De maneira diferente das áreas criadas pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), que quase sempre aliam medidas de compensação à proteção integral e proibição de atividades econômicas, um Geoparque conjuga com mais flexibilidade a preservação com demais atividades ao possibilitar a manutenção e valorização da paisagem cultural de uma região. Estas características deverão ser enfatizadas, principalmente a necessidade explicitada pela UNESCO de o geoparque funcionar a serviço do desenvolvimento local da população.

Artigo 9 – O turismo constitui-se numa das atividades mais salutares e produtoras de experiência e conhecimento para uma implantação que alie geração de renda, inclusão social e preservação, devendo ser, portanto, a atividade econômica mais viável para a região da Bodoquena. Por outro lado, há que se atentar para que uma dimensão nociva de indústria e fetichização não conduza ao desaparecimento daquilo que justamente se deseja preservar. Deverão ser objetos destes cuidados os modos tradicionais de saber-fazer indígena, ora à mercê da exploração dos direitos de criação coletiva e comércio inadequado de seus produtos.

O reconhecimento dos valores universais da serra da Bodoquena pelas gerações do futuro despertará a gratidão eterna àqueles que, no passado e no presente, tiveram a sabedoria de identificá-los e a coragem de lançar as bases para sua preservação. Que a compreensão da Bodoquena como Paisagem Cultural Brasileira, de onde sobressaia seu futuro Geoparque, configure-se como, mais que uma declaração de intenções, o estabelecimento de um pacto profundo entre o Homem e a Natureza, a primeira e última fonte universal de inspiração e harmonia cósmica.
Bonito, 21 de setembro de 2007, advento da Primavera

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