ENTREVISTA DADA AO HISTORIADOR CLEITO PINTO RIBEIRO E ANGELA ALBANO DO INFORMATIVO DO CAALE DE LAGOA SANTA - AGOSTO DE 2013
Carlos Rangel, nós gostaríamos que você nos falasse um pouco de sua
trajetória no IEPHA ao longo desses anos.
Entrei no IEPHA em 1984, para
trabalhar basicamente com o inventário de proteção ao acervo cultural. Na época,
o IEPHA estava fazendo um trabalho pioneiro e concluído que é preciso conhecer
primeiro, para depois proteger. Isso era na Superintendência, na época era Chefia
de Pesquisa, dentro da Diretoria de Proteção
à Memória. Em 89, eu fui elevado a chefe de pesquisa e fiquei no cargo até 92. Depois
assumi, entre 93 e 99, a
Superintendência de Proteção. E foi nela que surgiu o ICMS Cultural, (1995) um
programa que visava descentralizar a proteção ao Patrimônio Cultural.
Como esse projeto surgiu e se desenvolveu ao longo do tempo?
Tivemos uma experiência em
educação patrimonial, em 94, com um projeto piloto de Educação Patrimonial em
duas escolas, Zoroastro Viana, em Sabará, e Barão de Macaúbas, Belo Horizonte.
Foi essa experiência, que durou quatro meses, que nos deu a idéia de como
trabalhar com a Educação Patrimonial. Depois tentamos outro projeto, fazer
tombamentos envolvendo a comunidade. Mas não tiveram continuidade. O sociólogo Guido
Rocha Superintendente da Superintendência de Desenvolvimento e Proteção, chegou
a lançar um Caderno Técnico, o nº 01, que tinha modelos de lei, notificação e
ensinava como as Prefeituras deveriam cuidar do patrimônio. Ele era entregue às
prefeituras junto com uma cartilha e eram engavetados. As prefeituras recebiam
aquilo e não sabiam o que fazer, não tinham
motivação. O ICMS do Patrimônio Cultural, quando surgiu em 95, mudou esse
cenário. Como pontuaríamos os municípios que investem na preservação de seu
patrimônio, passamos a usar esse material, na sua parte “Diretrizes para
Proteção do Patrimônio Cultural”, para fazer com que as prefeituras se envolvessem
na preservação. Então, o município tinha de criar seu Conselho Municipal do Patrimônio,
ter uma lei de proteção própria e proteger seus bens culturais através de tombamentos, conforme metodologia do IEPHA. Passaram
a ter que fazer inventários de proteção do Patrimônio Cultural, enviar laudos desses
bens tombados todo ano, provar que estavam investindo em proteção, ter relatórios
de investimento em atividades culturais. Logo depois, nós colocamos a questão
da Educação Patrimonial. A Educação Patrimonial vai ser efetivada, de fato, a
partir de 2005 e, posteriormente, através da Lei nº18.030/2009. Os municípios passaram a fazer esse
trabalho tendo como base uma orientação nossa e a Educação Patrimonial se
tornou a partir de 2007, uma gerência da nova Diretoria de Promoção, a Gerência
de Difusão.
Como a Educação Patrimonial foi trabalhada pelo IEPHA nesses
primeiros anos?
Fizemos alguns pilotos a partir
de 2007 e mudamos o foco. O IEPHA trabalhava diretamente com os alunos. Vimos
que não era esse o nosso papel e sim trabalhar com os multiplicadores. Começamos,
em Paracatu, com um trabalho de envolvimento com o Departamento de Patrimônio, Secretaria
de Cultura, Conselho e professores da rede pública. Fizemos uma oficina com
esses professores e propusemos que criassem projetos de Educação Patrimonial, sob
nossa orientação. No ano seguinte, fizemos o mesmo em Pitangui. Depois ,
em Entre Rios ,
Jeceaba, São Brás do Suaçuí e em Ravena/Sabará e Berilo. Em Entre Rios , Jeceaba e
São Brás do Suaçuí, isso se deu em
função de um TAC aplicado pelo Ministério Público onde teriam de desenvolver um
projeto de Educação Patrimonial em função da exploração mineradora que iria
ocorrer e afetá-los. Houve problemas? Sim, como a falta de continuidade. E Educação
Patrimonial tem de ser permanente.
E hoje, como esse processo está ocorrendo? Houve um avanço?
Mesmo que conste da LDB e que a
Educação Patrimonial seja uma das vertentes que devam ser trabalhadas, as
escolas não trabalham o tema adequadamente. Fizemos um projeto em quatro
escolas tombadas aqui em BH, Olegário Maciel, Barão do Rio Branco, Barão de
Macaúbas e Pedro II com os professores e no ano seguinte não aconteceu nada. O
IEPHA saía e não havia continuidade. Se não houver um envolvimento, um encaixe da
Educação Patrimonial dentro de todas as matérias, isso não muda e teremos sempre
projetos esporádicos. Se não for uma política da escola, das Secretarias de Educação,
o quadro não vai mudar nunca. Serão sempre projetos que dependerão da boa vontade
de um ou outro professor. O ideal seria que todos os livros didáticos tivessem
atividades voltadas para a Educação Patrimonial, e não apenas os de História,
que abordam essas questões, mas de forma bem pinçada. “Ah, mas na Matemática não
dá!” Dá sim e eu provo! Temos vários exercícios que podem ser trabalhados na Matemática,
na Química. Por exemplo a composição das tintas utilizadas nas igrejas: Como
eram as pinturas nas igrejas barrocas? Como são hoje, no século XX? É possível
trabalhar Educação Patrimonial dentro do currículo, de uma forma geral.
Na sua avaliação qual o caminho para a superação desses entraves?
Como construir uma Educação Patrimonial que realmente promova a preservação?
Talvez fosse o caso de colocar no
currículo e dizer: “Todo mundo vai trabalhar isso!” Muitos professores não tem
essa dinâmica, mas, através de oficinas e cursos, é possível formar esses
profissionais. Para muitos, a Educação Patrimonial é colocar alunos para fazer
uma redação sobre a igreja “x”. Não é isso, não é ficar “vomitando” conceitos
na cabeça de menino, para que ele vire um papagaio e saia repetindo o que o
professor falou. Aí vem um repórter: “Porque você gosta dessa igreja?” E ele:
“Ah, porque ela é histórica!” Ele só está repetindo o que ouviu do professor!
Mas quando ele fala: “Porque eu, meus irmãos, minha mãe, fomos batizados aqui, ela
se casou aqui, a gente freqüenta essa igreja”, aí sim, ele sabe o porquê de
preservar essa igreja, sua importância. É esse o papel da Educação Patrimonial,
ensinar o menino a pensar por si e a entender porque preservar aquele bem, sua
importância e não simplesmente porque disseram que é. Não adianta se é de
Aleijadinho, Athayde ou quem for. Se aquilo não falar nada dentro dele, aquilo
não importa. O que importa é o sentimento que se tem por aquele bem e é isso
que a Educação Patrimonial tem que resgatar, despertar, aflorar.
Na sua opinião, como deve ser trabalhada a Educação Patrimonial?
A idéia do que é Educação Patrimonial
ainda é confusa. Por exemplo, ela não tem idade. Muita gente pergunta com que
idade deve-se trabalhar Educação Patrimonial. Pode-se trabalhar até com meninos de primário, que
ainda não foram alfabetizados. Obviamente a forma de se trabalhar vai ser
diferente, com desenhos, visitas, de forma mais lúdica. Pode-se trabalhar com
crianças e pode-se trabalhar com adultos. E Educação Patrimonial não é uma
coisa só de escola, ela transcende isso, vai além. Criar um programa de rádio
para falar dos bens culturais da sua cidade é uma forma de Educação Patrimonial.
Manter uma matéria num jornal como o In-Situ,
que fale sobre os bens culturais, sobre o acervo da cidade, é trabalhar Educação
Patrimonial. É possível trabalhar de várias formas, não só nas escolas. Existem
pessoas equivocadas, achando que Educação Patrimonial só pode ser trabalhada
com meninos alfabetizados, que não se pode trabalhar Educação Patrimonial com
idosos. Você pode envolvê-los com as crianças e resgatar sua autoestima, levando
esses detentores da memória para dentro da sala de aula, para que falem da sua
profissão, do tempo em que viveram, de quando eram jovens, das brincadeiras que
faziam quando meninos...
Na sua opinião, qual o papel do professor, do educador, dentro dessa
perspectiva?
Não se pode limitar o professor,
impedindo que ele possa ir além. A Educação patrimonial não pode ter travas.
Ela tem de ser livre, pois surgem novas idéias e formas de trabalhar. Não temos
que só fazer visitas guiadas a igrejas... Podemos fazer visita guiada a uma casa
antiga, de uma pessoa. Eu posso conseguir que aquela pessoa abra a casa dela
para mim e os meus alunos. Porque não? Eles vão entender uma casa antiga e
fazer comparações entre a casa em que eles moram e aquela casa mais antiga, como
a divisão dos ambientes... Os espaços eram maiores, o banheiro, o quarto eram
maiores e o menino vai entendendo como é que eles viviam. Percebemos hoje que, em
algumas casas antigas, os muros eram baixos. E porque os muros podiam ser
baixos? Aí já há um gancho para outra questão, que é social: começou a ficar
perigoso, começou o problema dos assaltos, que naquela época não haviam. A
cidade cresceu, parte de sua população foi marginalizada e aí precisaram subir
muros, cercas eletrificadas... Com a Educação Patrimonial você percebe tudo
isso. Você percebe porque mudou, porque não é, por exemplo, mais barroco... Você
vai buscar entender porque a igreja simplificou seus espaços, entender porque
afastou os santos, porque não se usa mais tantas imagens. Antes, as pinturas “falavam”,
pois a maioria da população não sabia ler e a idéia religiosa tinha de ser
passada. A Educação Patrimonial pode levar a essas descobertas, a essas
comparações. Não é falar para o menino, é deixar que ele descubra. Ver quais
são as comparações que surgem e o porquê dessas diferenças. Se ele não sabe,
ele pesquisa. Pesquisando ele conhece e conhecendo, respeita. Como podem querer
que eu respeite aquela igreja ou aquele casarão, se não sei nada sobre ele?
Como podem querer que eu respeite o Congado que passa na rua se eu não sei o
que significa? Eu só posso respeitar o que eu conheço. E respeitando, eu
conservo, preservo.
Há exemplos de trabalho bem feito nessa área, que instigaram as
comunidades a pensar –e preservar- seu patrimônio. Fala-se da inclusão da Educação
Patrimonial nos currículos. Seria esse o caminho?
Nós tentamos na Escola Pedro II. Essa
pretendia se tornar uma escola modelo após seu restauro e tombamento. Surgiu a
idéia de se criar uma matéria e contrataram uma professora para a Educação Patrimonial.
Esse foi o erro, ela não conseguiu a participação de outros professores. A Educação
Patrimonial não pode ser só mais uma matéria, ela tem de ser uma idéia e uma
ação dentro de todas as matérias, senão ninguém vai dar ouvidos. A verdade é
que a Educação Patrimonial deveria ser trabalhada até mesmo dentro dos órgãos, conselhos,
departamentos de Patrimônio. Um conselheiro amigo meu faz a seguinte experiência:
antes de começar as reuniões do Conselho ele faz uma atividade voltada para a Educação
Patrimonial. Ou é uma poesia, uma história, um conto, algo que envolva os
conselheiros com a cultura local. É uma forma de dizer: “É para isso que vocês
estão aqui! É pra defender isso!” Muitas vezes não sabem o que estão fazendo,
não conhecem a lei municipal de proteção, a função do Conselho, seu regimento interno.
E isso também envolve Educação Patrimonial, a pessoa se familiarizar com sua
função e entender o que se deve e tem que fazer.
Como você vê a isso dentro da “arqueologia de contrato”? Para
desenvolver esses projetos há exigências do IPHAN, entre elas a Educação Patrimonial...
Vejo do mesmo jeito que vejo outros
projetos: feitos para cumprir tabela e, às vezes, mal feitos, pois se trata
apenas de uma palestra, uma cartilha. Educação Patrimonial não é uma palestra, um
cursinho. Não é distribuir uma cartilha e pronto e acabou. Não adianta nada
publicar uma cartilha boa se ela não for trabalhada. Se não for, vira apenas
mais um material a ser arquivado. A cartilha tem de ser dinâmica, trazer
exercícios, fazer com que o aluno pense. Ela não pode vir com respostas prontas,
mas sim motivar a procura por respostas. Reiterando, a Educação Patrimonial deve
ser permanente.
Como você vê a atuação dos Conselhos hoje?
Depois que o ICMS do Patrimônio
Cultural foi implantado, os municípios começaram a trabalhar de fato. Até 1996 as
coisas eram feitas de uma forma amadora, superficial. A partir daí, os
conselheiros passaram a entender melhor sua função, as deliberações foram mais
exigentes em relação às atas, as decisões ficaram mais claras. Existem
problemas? Sim, mas podemos dizer que hoje há 650 conselhos funcionando em
Minas. Isso não existe em lugar nenhum, somente aqui. Hoje o IEPHA é conhecido
e o Patrimônio Cultural é discutido dentro das prefeituras, se não pela questão
da preservação, pelo recurso. Algumas prefeituras avançaram e entenderam que a
questão não é essa, é a preservação da memória. Outras ainda estão presas a isso,
fazendo um trabalho “pro forma” para
pontuar, sem uma preocupação efetiva na preservação.
Qual sua opinião a respeito das empresas que prestam consultoria
para o ICMS Cultural? Como você vê esse trabalho?
Elas são importantes, claro. Mas,
se você não forma seu pessoal, vai sempre estar à mercê dessas empresas. Quando
não tem um arqueólogo, você contrata um, pois é difícil para uma prefeitura
manter um arqueólogo, pois o custo é alto. O ideal é que se tivesse pelo menos
um historiador e um arquiteto na equipe, para que as prefeituras desenvolvessem
o trabalho. Na falta ou necessidade de um geógrafo, de um arqueólogo, contrata-se.
Mas, às vezes, a prefeitura está começando um trabalho e como o trabalho tem de
ser técnico, aí dizem: “O IEPHA exige demais! Por isso tem que contratar!” O
trabalho tem é de ser bem feito. Você não preserva com uma folha de papel, preserva
com todo um trabalho técnico: um dossiê de tombamento bem montado, diretrizes
bem fundamentadas e se a prefeitura não tem esse profissional, é necessário
contratar. O que não podemos é ficarmos reféns. Nesse sentido, vejo as empresas
como aliadas. O ICMS é o que é hoje em grande parte por causa delas. Elas
divulgaram e levaram o ICMS para todos os cantos de Minas.
E no caso específico da Educação Patrimonial?
No início talvez seja necessário
um profissional experiente em Educação Patrimonial, de modo a capacitar seus
multiplicadores para que continuem o trabalho. À partir do momento que se aprende o serviço, isso já não é mais
necessário. Alguns municípios que antes contratavam empresas agora são autossuficientes,
como Ouro Preto. Quando precisam de um profissional que não tem, contratam. Não
há problema nisso. O que não podemos é ficar atrelados a essas empresas. Cabe
também aos órgãos de preservação oferecer cursos, formar esses professores. O
IEPHA oferece cursos presenciais, videoconferências. É uma forma de atingir mais
municípios, formar mais multiplicadores. O que não pode acontecer é a
prefeitura contratar uma empresa e soltá-la por aí. Tem que por a equipe dela
acompanhando o trabalho, para aprender e indicar o que é importante, porque
senão eles inventariam o que ELES acham importante. E eles não vivem ali. É
necessário acompanhar, sugar daquela empresa o máximo possível para que num
futuro não se precise mais dela.
Como você vê o Patrimônio Cultural e sua preservação em Minas Gerais ?
Para mim, o trabalho mais
importante que o IEPHA desenvolve é o programa do ICMS do Patrimônio Cultural.
Todos os órgãos de preservação do país, o IPHAN; o CONDEPHAAT, em SP; o INEPAC
no RJ; o IPAC da Bahia; o IPHAE, no RGS, todos eles tombam, registram, fazem inventários,
educação patrimonial. Mas não tem um projeto como o ICMS Patrimônio Cultural,
que descentraliza a proteção do patrimônio cultural. Hoje temos mais de 600 Conselhos
do Patrimônio Cultural funcionando, mais de 4 mil bens tombados, mais de 30 mil
bens inventariados no Estado pelos municípios. Não pelo IEPHA, pelos
municípios! Eu vejo que Minas está à frente e nosso papel é ensinar, transmitir
aos outros estados essa nossa forma de trabalhar.
Alguma coisa a mais que você gostaria de acrescentar, Carlos?
A preservação do Patrimônio Cultural
não pode ser uma coisa de escritório. Tem de estar na rua, gostar de gente,
pois não preservamos o patrimônio para o IEPHA, para o Conselho, para
departamentos. Preservamos para as pessoas e para nós mesmos. Tem de gostar de
gente, senão é melhor desistir de trabalhar com Patrimônio.
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