PROTEUS EDUCAÇÃO PATRIMONIAL 22 ANOS

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quinta-feira, 27 de setembro de 2012

CONTOS - A MATRIZ

A MATRIZ

Autor: Carlos Henrique Rangel


Em uma cidadezinha não muito distante, igual a tantas existentes neste nosso Brasil, vivia uma comunidade pacífica e ordeira, feliz com seus pequenos prazeres: a conversa na calçada, a missa na Matriz, o passeio que se seguia após o culto e é claro, as festas regionais. Praticamente a vida do lugar acontecia na praça da Matriz onde todos se encontravam. A Matriz, com suas duas torres era a presença mais marcante há quase trezentos anos. Símbolo da religiosidade local acompanhava a vida de todos com sua grandiosidade e imponência.


Esse símbolo adorado e reverenciado por todos tinha o seu benfeitor. Na verdade uma família de benfeitores que há cem anos cuidava da Matriz, trocando telhas quebradas, pintando, limpando. O ultimo membro desta antiga e rica família de comerciantes era o Sr. Israel Ferreira do Amaral Neto, conhecido por todos pelo carinhoso apelido de IFAN. E este rico e respeitado senhor durante cinqüenta anos cuidou da Matriz como se fosse um filho que nunca teve. No entanto a riqueza acumulada em décadas pela família Ferreira do Amaral, que parecia inesgotável foi se dissipando em negócios mal feitos e o Sr. IFAN chegou à velhice praticamente pobre.


Essa pobreza seria apenas um drama familiar se não houvesse um grande porém: a Igreja Matriz... Com recursos limitados que mal davam para o sustento de sua casa, o Sr. IFAN não pôde mais cuidar da Igreja. As telhas não eram mais trocadas, a pintura não era renovada, os vidros quebrados continuavam quebrados.


A pacata comunidade assistia à degradação do seu bem mais precioso sem entender o que acontecia.

- Olha mamãe, o vidro está quebrado – disse um menino mostrando a janela da fachada principal da Matriz.

- É, isso é horrível meu filho. Onde está o Sr. IFAN que não resolve este absurdo? – Exclamou Dona Maria escandalizada com a situação do velho templo.


- Está toda se perdendo... Coitada da nossa Igreja... – resmungou o velho Sr. Manuel que passava com uma de suas netas.

O padre José que estava na porta ouviu o comentário e balançou a cabeça triste.


- O telhado está todo cheio de furos... Quando chove, a igreja vira uma piscina... – Disse olhando para a janela.
- Isto não está certo, o Sr. IFAN não podia ter deixado isto acontecer... – Protestou Jorge, o pipoqueiro da Praça.

- Concordo com o senhor... Isto é desleixo. Temos que fazer alguma coisa. – Disse Dona Maria.

- Vamos lá na casa dele agora resolver isto de uma vez por todas. – Disse o Sr. Manuel.

- Isso mesmo vamos todos nós até a casa dele. – Falou o Padre José se adiantando.
E assim o pequeno grupo se dirigiu à mansão dos Ferreira do Amaral para tomar satisfação do solitário Sr. IFAN.

Foram recebidos pela velha criada da família que se assustou com a visita inesperada.


- Padre José, Sr. Manuel, Dona Maria... Já ficaram sabendo? – Espantou-se a Tia Nenê.


- Sabendo de que mulher? – Perguntou o padre sem entender.

- Ih... O Sr. IFAN, coitado, está doente há cinco dias... Não sai da cama... – Disse ela abrindo a porta para que a comitiva entrasse na sala.
- Não sabíamos... A verdade é que viemos por outro motivo. Precisamos falar com ele...


- Calma Manuel... O pobre homem está doente... – Disse o Padre colocando a mão no ombro do homem.

- Olha, se a coisa é urgente, eu vou falar com ele para ver se pode recebê-los. – Disse Tia Nenê aflita.

- Não sei não... Será que agente não poderia resolver isto outro dia... – Lamentou o Padre José.


- Não, nada disso. Vamos resolver tudo agora mesmo, ou o senhor esqueceu do estado triste em que está a nossa querida Matriz? – Falou o Sr. Manuel um pouco alterado.


- Olha, eu vou falar com ele e volto já. – Disse Tia Nenê saindo rapidamente.

Voltou logo depois pedindo que todos subissem ao quarto do velho Sr. IFAN.

O grupo o encontrou deitado, com o rosto branco como cera e os finos cabelos brancos desgrenhados.


- Oh meus amigos, desculpem recebê-los assim... A gripe me derrubou... Nada muito grave... A que devo a honra dessa visita? – Perguntou o polido Sr. IFAN.


- Olha Sr. IFAN lamentamos muito incomodá-lo neste momento, mas temos algo muito sério para tratar. – Disse o Padre José com o semblante carregado.


- Por favor, sentem–se estou doente, mas não estou morrendo. – Falou o Sr. IFAN.


O grupo se acomodou nas cadeiras espalhadas pelo quarto e um pequeno silêncio ocupou o espaço por alguns segundos. Foi Dona Maria que o quebrou.

- É sobre a Matriz... Sabe Sr. IFAN, ela está terrível com furos no telhado, vidros quebrados, imagens com cupim... – Disse ela timidamente.


- É... Ela está horrível, daqui a pouco cai. – Exagerou o Sr. Manuel.


- É isto mesmo, Está suja quebrada e o que o senhor vai fazer? – Perguntou o Pipoqueiro.


- Olha meus amigos, o que eu posso fazer?- disse ele mostrando a cama.

- O que o senhor pode fazer? Ora Sr. IFAN, o Senhor tem que dar um jeito nisto. – Disse o Padre José.

- Eu? Olhem para mim. Olhem para minha casa... Estou velho, velho e pobre. Mal, mal tenho recursos para sustentar-me e a esta pobre Tia Nenê... – Lamentou IFAN.

- Mas o senhor sempre cuidou da Igreja. O senhor e toda a sua família... – Rebateu o Sr. Manuel.


- Eu sei disso. E olha que é com muito pesar que admito que não tenho condições de cuidar mais dela. – Falou o velho e doente senhor.
- Mas isto não está certo. Tem que cuidar sim senhor – Gritou o Sr. Manuel.


- Meu amigo, você mais do que eu sabe do amor que minha família sempre teve pela igreja, mas ela nunca foi nossa. A Matriz é de toda a cidade. – Disse IFAN.


- A onde o senhor quer chegar? Perguntou Dona Maria.

- À verdade. A Matriz é responsabilidade de todos nós, não de uma família...

- Mas vocês sempre fizeram tudo sozinhos... – Disse o Padre.


- É verdade, foi um grande erro e só agora nesta situação difícil que percebi isto. – Disse IFAN.


- Mas se o senhor não pode cuidar, quem vai cuidar? – Perguntou o pipoqueiro.

- Ela não é de todos? Então todos vão cuidar...- Falou o doente com a voz rouca.


- Mas não temos dinheiro... – Falou o Sr. Manuel levantando-se.


- É verdade, individualmente somos todos pobres e o conserto da nossa querida Igreja é caro...Mas juntos... Juntos podemos muito. – Disse o Sr. IFAN.

- Como? Não entendi. – perguntou o Padre José.
- É simples, vamos buscar os recursos na comunidade. – Falou IFAN sentando-se na cama.
- Buscar como? – Perguntou Dona Maria.
- Ora, vamos criar comissões... O Padre José pode organizar um leilão...
- Leilão de que Sr. IFAN, a Igreja não tem nada para leiloar... – Riu o Padre.


- Leilão das coisas que vamos recolher da comunidade... Um leitão do Sr. Pedro fazendeiro, um cesta de frutas do pomar da Dona Maria, uma toalha bordada da Dona Rita...

- Que ótima idéia Sr. IFAN, Eu conheço muita gente que pode oferecer coisas interessantes. – Falou radiante o Padre José.

- Podemos fazer barraquinhas... Vender pastéis após a missa. – Disse Dona Maria sorrindo.

- Isto mesmo gente. Dona Maria fica encarregada de montar a comissão das barraquinhas, Jorge conhece muita gente e pode ficar encarregado de recolher objetos para o leilão junto com o Padre...- Falou o Senhor Manuel.
- E o senhor, o que vai fazer? – Perguntou José.


- Vou procurar os pedreiros e marceneiros e explicar o problema... Pedir o apoio deles. – Falou o Senhor Manuel.

- Que ótimo. Então vamos logo resolver isto. – Gritou o Padre José levantando-se. Os outros o seguiram radiantes. O grupo se despediu do doente e foi tratar dos assuntos.


O Padre José aproveitou a hora da missa para convocar voluntários e o apoio de toda a comunidade. Não demorou muito para que todos contribuíssem com alguma coisa ou com alguma atividade. O Senhor Haroldo da Gráfica fez os convites que foram espalhados por toda parte convocando para o leilão em prol da Matriz e para as barraquinhas na Praça. Em dez dias tudo estava pronto. No domingo de manhã aconteceu o leilão regado à fogos de artifício e balões. À noite as barraquinhas fizeram a festa como nunca havia se visto na cidade. Na Praça toda colorida de bandeirinhas multicores e de toldos brancos das barracas oferecia-se de tudo um pouco: pastéis da Dona Nhonhô, toalhas de renda da Dona Rita, bijuterias da Martinha... E tinha bebidas: refrigerantes e cervejas... Uma festa. Tudo e todos pela Matriz era o lema.
Praticamente todo mundo participou, até mesmo o senhor IFAN, coitado, ainda gripado.

O dinheiro arrecadado não foi muito, mas permitiu o início da obras realizadas por técnicos especializados. Logo alguém teve a idéia de vender santinhos e postais para conseguir mais dinheiro. O Sr. Alfredo do mercado ofereceu camisetas com estampas da igreja, um sucesso. Os pastéis de Dona Nhonhô viraram mania da cidade... Mas ainda era pouco.

- Gente do céu! E os santos? Como ficam os santos?- Perguntou Zé do Peixe na reunião semanal da Comissão.

- É mesmo, a Santa Rita está toda carunchada, coitada! – Disse Ritinha.

- Não é só ela não, o São José parece um queijo suíço de tão esburacados. – Falou o Padre José.

- Oh gente! Está aí a solução. – Falou Dona Maria levantando com os olhos brilhantes de euforia.


- Que solução? – Perguntou Padre José.


- Ora, não estão vendo? Muitas meninas, moças e senhoras chamam-se Rita por causa da Santa Rita...


- É mesmo. Muitos homens chamam-se José por causa do São José... – Falou o Padre José.
- Entendi. Vamos procurar as Ritas e os Josés. – Falou o Sr. IFAN.


E assim a Comissão dos santos saiu pelas ruas da cidade visitando as Ritas e os Josés pedindo ajuda para restaurar as imagens.

- Olá Dona Rita, como vai? – Perguntavam:


- Vou bem...


- Sabe Dona Rita, A senhora chama Rita por causa da imagem de Santa Rita, não é?


- É sim...


- Pois então, a Coitada da Santa está lá toda cheia de cupim... Precisa ser restaurada. Quanto a senhora pode dar para ajudar a Santa?


E assim fizeram com o São José, com o Santo Antônio, com tantos outros santos. Restauraram as imagens com a ajuda das Marias, dos Joãos, das Ritas e dos Josés.

A igreja vivia cheia de gente querendo ajudar ou assistir as obras. Os professores das escolas levavam os alunos para verem os trabalhos em horários pré-determinados e os restauradores prestativos explicavam tudo. Todos ajudavam e aprendiam ajudando.

Mas havia o forro. O belo forro rococó da Matriz fora muito danificado pelos anos de goteira.

- Gente! Agora é o forro, olha só o estado dele. – Disse o Sr. Manuel apontando para o alto.

- Agora ficou difícil, não conheço ninguém que se chama forro... – Brincou um rapaz.

- Engraçadinho. Se não tem ninguém tem todo mundo... – Disse Dona Maria.


Pensaram um pouco em silêncio e o próprio rapaz que fizera a brincadeira teve uma idéia.


- E se a gente fizesse um desenho do forro e dividisse em pedaços iguais. Podíamos vender os pedaços...


- Que idéia ótima. – Gritou o Padre José.

E isto foi feito. Fizeram o desenho do forro e saíram oferecendo a todos.

Conseguiram restaurar o forro com a ajuda de todos.


No dia da inauguração as pessoas apontavam para certos lugares no forro sorrindo.

- Está vendo aquele pedaço ali, foi eu que ajudei a restaurar. – Disse Zé do Peixe.

- Grande coisa, aquele outro ali foi eu. – Falou Dona Maria rindo.


Foi uma grande festa na cidade quando as obras terminaram. A igreja brilhava de tão bonita. A Praça estava toda enfeitada... Fogos de artifício coloriam o céu. As mulheres vestiram suas melhores roupas. Os homens pareciam noivos de tão elegantes. O Padre José parecia o rei da festa de tão feliz. A pacata cidade que sempre fora muito calma e feliz estava mais unida do que nunca. A Igreja que sempre fora adorada por todos, agora era de fato de todos. E este sentimento se espalhou para todos os lugares da cidade. Agora os casarões eram de todos, a praça era de todos, as cachoeiras, as árvores, as festas...Um sentimento comunitário de respeito por tudo imperava.

O Sr. IFAN?

Sarou da gripe e passeava todas as tardes de braços dados com Tia Nenê. Continua muito respeitado por todos.

FIM



GLOSSÁRIO

- Benfeitor

O que faz bem; aquele que faz benfeitoria.

- Comissão

Conjunto de pessoas encarregadas de tratar juntamente um assunto.

- Imponência

Altivez; magnificência; grandiosidade; suntuoso.

- Pacata

Pacífica; sossegado; tranqüila.

- Símbolo

Objeto a que se dá uma significação moral.

- Semblante

Rosto; aparência; fisionomia.

- Restaurar

Recuperar; reintegrar; renovar; por em bom estado.

- Rococó

Estilo de ornamentação que vigorou em Minas Gerais a partir da segunda metade do século XVIII.



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