Da Natureza à Cultura
“Montaigne (1533-1572) procurou
não se espantar em demasia com os costumes dos Tupinambá, de quem teve notícias
e chegou mesmo a ter contato com três deles em Ruão, afirmando não ver nada de
bárbaro ou selvagem no que diziam a respeito deles, porque “na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua
terra”.
Imbuído de um pioneiro sentido de
relativismo cultural, Montaigne assim comentou a antropofagia dos Tupinambá:
Não me parece excessivo
julgar bárbaros tais atos de crueldade, mas que o fato de
condenar tais defeitos não nos
leva à cegueira acerca dos nossos. Estimo que é
mais bárbaro comer um homem vivo
do que o comer depois de morto; e é pior
esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos,
ou
entrega-lo ao cães e porcos, a pretexto de devoção e fé, como não
somente o
lemos mas vimos ocorrer entre vizinhos nossos conterrâneos.
E terminou, ironicamente, após
descrever diversos costumes daqueles índios Tupi: “Tudo isso é interessante,
mas que diabo, essa gente não usa calças.””
Fonte: Apostila – Curso de
Educação Patrimonial – Arceburgo, Estilo Nacional – Arquitetura, Cultura e
Preservação, s/d., p.5/48.
MEMÓRIA
"(...)
Em vários momentos, Maurice
Halbwachs insinua não apenas a seletividade de toda memória, mas também um
processo de “negociação” para conciliar memória coletiva e memórias
individuais: ”Para que nossa memória se beneficie da dos outros, não basta que
eles nos tragam seus testemunhos: é preciso também que ela não tenha deixado de
concordar com suas memórias e que haja suficientes pontos de contato entre ela e as outras para que a
lembrança que os outros nos trazem possa ser reconstruída sobre uma base comum.”
Esse reconhecimento do caráter
potencialmente problemático de uma memória coletiva já anuncia a inversão de
perspectiva que marca os trabalhos atuais sobre esse fenômeno. Numa perspectiva
construtivista, não se trata mais de lidar com os fatos sociais como coisas, mas de analisar como os
fatos sociais se tornam coisas, como e por quem eles são solidificados e
dotados de duração e estabilidade. Aplicada à memória coletiva, essa abordagem
irá se interessar, portanto pelos processos e atores que intervêm no trabalho
de constituição e de formalização das memórias. Ao privilegiar a analise dos
excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a
importância de memórias subterrâneas que, como parte das culturas minoritárias
e dominadas, se opõem à “Memória oficial”, no caso a memória nacional. Num
primeiro momento, essa abordagem faz da empatia com os grupos dominados estudados uma regra metodológica e reabilita
a periferia e a marginalidade. Ao contrário de Maurice Halbwachs, ela acentua o
caráter destruidor, uniformizador e opressor da memória coletiva nacional. Por
outro lado, essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão
no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em
sobressaltos bruscos e exacerbados. A
memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência
onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes.
(...)"
"A função do "não-dito"
(...)
Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros zonas de sombra, silêncios,"não-ditos". As fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos. No plano coletivo, esses processos não são tão diferentes dos mecanismos psíquicos ressaltados por Claude Olievenstein: "A linguagem é apenas a vigia da angustia... Mas a linguagem se condena a ser impotente porque organiza o distanciamento daquilo que não pode ser posto à distância. É aí que intervém, com o poder, o discurso interior, o compromisso do não-dito entre aquilo que o sujeito se confessa a si mesmo e aquilo que ele pode transmitir ao exterior."
A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor.
Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado. Conforme as circunstâncias, ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto. Sobretudo a lembrança de guerras ou de grandes convulsões internas remete sempre ao presente, deformado e reinterpretando o passado. Assim também, há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido. E essa constatações se aplicam a toda a forma de memória, individual e coletiva, familiar, nacional e de pequenos grupos. O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do "não-dito"à constatação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização. Para que emeria nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a simples "montagem" ideológica, por definição precária e frágil."
"A função do "não-dito"
(...)
Por conseguinte, existem nas lembranças de uns e de outros zonas de sombra, silêncios,"não-ditos". As fronteiras desses silêncios e "não-ditos" com o esquecimento definitivo e o reprimido inconsciente não são evidentemente estanques e estão em perpétuo deslocamento. Essa tipologia de discursos, de silêncios, e também de alusões e metáforas, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta, de ser punido por aquilo que se diz, ou, ao menos, de se expor a mal-entendidos. No plano coletivo, esses processos não são tão diferentes dos mecanismos psíquicos ressaltados por Claude Olievenstein: "A linguagem é apenas a vigia da angustia... Mas a linguagem se condena a ser impotente porque organiza o distanciamento daquilo que não pode ser posto à distância. É aí que intervém, com o poder, o discurso interior, o compromisso do não-dito entre aquilo que o sujeito se confessa a si mesmo e aquilo que ele pode transmitir ao exterior."
A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor.
Distinguir entre conjunturas favoráveis ou desfavoráveis às memórias marginalizadas é de saída reconhecer a que ponto o presente colore o passado. Conforme as circunstâncias, ocorre a emergência de certas lembranças, a ênfase é dada a um ou outro aspecto. Sobretudo a lembrança de guerras ou de grandes convulsões internas remete sempre ao presente, deformado e reinterpretando o passado. Assim também, há uma permanente interação entre o vivido e o aprendido, o vivido e o transmitido. E essa constatações se aplicam a toda a forma de memória, individual e coletiva, familiar, nacional e de pequenos grupos. O problema que se coloca a longo prazo para as memórias clandestinas e inaudíveis é o de sua transmissão intacta até o dia em que elas possam aproveitar uma ocasião para invadir o espaço público e passar do "não-dito"à constatação e à reivindicação; o problema de toda memória oficial é o de sua credibilidade, de sua aceitação e também de sua organização. Para que emeria nos discursos políticos um fundo comum de referências que possam constituir uma memória nacional, um intenso trabalho de organização é indispensável para superar a simples "montagem" ideológica, por definição precária e frágil."
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