O papel da religião nas Minas do Século XVIII
Autor: Carlos Henrique Rangel
Na conquista e ocupação das Minas
a religiosidade sempre teve papel importante. Todas as bandeiras possuíam um
capelão, único da comitiva que não pegava em armas.
A exigência de um capelão nas
bandeiras era algo obrigatório, pois em caso de algum bandeirante estivesse à
beira da morte ou ter morrido, o capelão lhe daria a extrema-unção e realizaria
a missa fúnebre. Os bandeirantes acreditavam que por mais que tivessem cometido
assassinatos, estupros, adultério, vingança, inveja, traição, luxúria,
ganância, ira, etc., Deus iria perdoá-los, diante de seu arrependimento, pois a
extrema-unção era entendida como um salvo-conduto para poderem ir para o Céu.
(RALIV, Leandro. Os Bandeirantes. Disponível na Internet: <http://seguindopassoshistoria.blogspot.com.br/2013/03/os-bandeirantes.html>. Acessado
em: 10 de março de 2014).
Uma vez descoberto o ouro
definia-se a ocupação da área e a situação de uma capela para os serviços
religiosos. Estas eram instaladas em locais estratégicos servindo de referência
e ponto de atração dos colonos e suas moradias. Os pequenos templos tornavam-se
ponto de encontro dos habitantes e nos primeiros anos das povoações, os padres
que conduziam os serviços religiosos conseguiam controlar - em parte - os
abusos de uma sociedade mineradora que vivia à margem das autoridades
coloniais.
Essas capelas iniciais eram
precárias e à medida que o povoado crescia e se fixava eram reconstruídas com
novas proporções e com materiais mais duráveis. Passavam então a contar com
nave e sacristia e às vezes torres. Elevadas a paróquia essas capelas eram
ampliadas e recebiam o status de matriz.
Na região do Circuito de Santa
Bárbara, ainda no início do setecentos, várias capelas foram elevas a paróquia,
dentre elas: as de Sabará, Caeté, Santa Rita Durão, Santa Bárbara, Catas Altas,
Santa Luzia e Barão de Cocais.[1]
À medida em que os arraiais iam
se povoando, o bispo do Rio de Janeiro autorizava a ereção de capelas e a
criação das primeiras freguesias com párocos encomendados, ou seja, sacerdotes
nomeados pelo prelado. Com a autorização real e dependendo do grau de sua
importância, recebiam a confirmação do Rei e passavam ao patamar de paróquia
colativa. A região, portanto, povoava-se rapidamente, sendo que “os primeiros
descobertos oficiais dataram de 1694, as primeiras vilas de 1710, o primeiro
bispado de 1745.” (MELO E SOUZA, 2006, p.154).
A ausência das ordens religiosas,
proibidas no território mineiro a partir de 1711[2]
fez com que as populações se organizassem em irmandades[3]
devocionais que além dos serviços religiosos realizavam serviços sociais como
construção de igrejas, proteção e assistência dos membros, fundação de
hospitais, criação de instituições de ensino e a realização de festas e outras reuniões
sociais e serviços que fossem de necessidade do grupo. Essas irmandades, ordens
terceiras e confrarias eram subordinadas tanto à jurisdição eclesiástica como a
temporal, apesar de possuírem alguma autonomia. As rivalidades entre as
irmandades motivou o surgimento de igrejas luxuosamente ornamentadas ao gosto
barroco e rococó patrocinando inúmeros artistas e artífices.
Quando se fundava um arraial,
cabia, geralmente, à Irmandade do Santíssimo Sacramento a construção da
primeira capela, origem da futura matriz. Os irmãos do Santíssimo eram os
homens mais categorizados do local, ligados muitas vezes à administração,
cabendo-lhes, portanto, a ocupação do altar principal. As demais associações
que eram criadas adquiriam o direito sobre os altares laterais, mas, logo que
fosse possível, tratavam de construir sua própria igreja, o que lhes garantia
maior participação na vida local. Assim, as classes mais poderosas e ricas,
compostas exclusivamente de homens brancos, se congregavam na Irmandade do
Santíssimo Sacramento e nas Ordens Terceiras de Nossa Senhora do Carmo e de São
Francisco. Na base inferior da sociedade encontravam-se os homens de cor em
geral, escravos ou forros, que se reuniam nas Irmandades de Nossa Senhora do
Rosário, Santa Efigênia e Nossa Senhora das Mercês. Em oposição intermediária
permaneciam os mestiços, pardos e mulatos, associados às Irmandades de São
José, Cordão de São Francisco e Nossa Senhora do Amparo. (FUNDAÇÃO, 1982,
p.23).
Importante destacar o papel das
irmandades negras que permitiam aos escravos, o convívio social e devocional
nessa sociedade repressiva e desigual. As irmandades promoviam festas e
procissões que uniam a religiosidade com elementos profanos promovendo o
sincretismo das crenças cristãs e o misticismo originário da África.
Atualmente essas irmandades
continuam atuantes, mantendo as tradições surgidas no século XVIII.[4]
- A Devoção a Nossa Senhora
Maria,
mãe de Jesus Cristo, ocupa posição de destaque na religião católica, sendo
adorada como “Virgem Maria Mãe de Deus”. No Novo Testamento é mencionada em
poucas, mas significativas passagens: Quando recebe a anunciação do anjo
Gabriel de que vai ser mãe; na visita a sua prima Isabel; nas bodas de Canãa,
quando avisa ao Cristo que o vinho havia acabado; na paixão do Cristo aos pés da
cruz.
A
devoção à Virgem iniciou-se a partir do século V. O Concílio de Éfeso[5] realizado em 431, definiu
que Maria era “Theotokos”[6], ou seja, Mãe de Deus. A
partir de então o culto a Nossa Senhora passou a ter uma maior divulgação. No
século seguinte, surgiram as primeiras representações em pintura. Sua
diversificada iconografia é quase tão antiga quanto a sua devoção.
No
Brasil a figura da Virgem foi trazida pelos primeiros colonizadores e a cada
fase da saga dessa ocupação, predominou um tipo de devoção a Nossa Senhora. Nos
primeiros anos de ocupação da nova terra, no início do século XVI, a Virgem foi
adorada sob as figuras de Nossa Senhora da Esperança, Nossa Senhora da Graça,
Nossa Senhora das Maravilhas, Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora da
Ajuda. Outras devoções se afirmaram a partir da segunda metade do seiscentos:
Nossa Senhora da Vitória e Nossa Senhora dos Prazeres.
A
representação de Nossa Senhora da Piedade – Pietá em italiano – evoluiu a
partir do século XIV. No século XVI, sob a influência do ideário renascentista,
o Cristo Morto aparece estendido aos pés da Virgem sentada, tendo a cabeça
apoiada nos seus joelhos. Esta representação chegou às Minas Gerais
acompanhando os bandeirantes paulistas. Era considerada padroeira da passagem
denominada Guaratinguetá, obrigatória para os viajantes que transitavam de São
Paulo ao Rio de Janeiro, o último lugar de descanso onde se podia orar antes da entrada em terras mineiras.[7] Quanto a devoção a Nossa
Senhora Mãe dos Homens, essa teria surgido em
Lisboa, Portugal, no setecentos iniciada por Frei João de Nossa Senhora, do
convento de São Francisco das Chagas do bairro
Xabregas, tendo maior destaque em Minas Gerais a partir da segunda
metade do século XVIII.
– Os Eremitas Mineiros
Nas
Minas Gerais do século XVIII a devoção “mariana” foi muito difundida pelos
leigos agrupados em irmandades e também por iniciativa de eremitas responsáveis
pela fundação de comunidades religiosas como o Recolhimento de Macaúbas, a Ermida
de Nossa Senhora da Piedade e o Santuário do Caraça.
Diante da maré montante das
ambições e dos vícios desenfreados pela “sagrada fome do ouro”, que avassala
irresistivelmente as Minas Gerais do século XVIII, começam a surgir os
inconformados com aquêle estado de coisas. São os eremitas, os “irmitoens”,
como são chamados no tempo. Primeiro um, talvez o minerador Antônio Pereira,
que, entre as penhas da Serra do Ouro Prêto, vai atinar com a gruta-santuário,
que lhe fica com o nome, mas que o devoto consagra a Nossa Senhora da
Conceição. Depois, Félix da Costa, ao qual se lhe agrega toda a família, em
Macaúbas, onde surge o primeiro “recolhimento”. E mais o penitente Pe. Manuel
dos Santos, nos sertões do têrmo das Minas Novas, Feliciano Mendes sara do
corpo e da sede do ouro, empunha o bordão de andador do Senhor Bom Jesus de
Matosinhos e ergue o santuário de Congonhas do Campo, Antônio da Silva
Bracarena oure a nova portentosa da “Muda da Penha”, arrancha-se nas faldas da
Serra da Piedade, despede-se do mundo, sobe a montanha e ergue lá em cima a
branca ermida da Virgem milagrosa. O Irmão Lourenço de Nossa Senhora,
desencantado do mundo e dos homens, desce do Tijuco, logo em seguida, para ir
alapardar-se na Serra do Caraça, tão ínvia e esconsa, mas que se transmuda no
Hospício de Nossa Senhora Mãe dos Homens. (CARRATO, 1963, p.182,183).
Esses eremitas eram homens comuns
que abraçavam a devoção religiosa abandonando a vida mundana da capitania, de
forma radical. São ascetas místicos - em sua maioria, leigos - que se fixavam
em um objetivo divino. Em função desse objetivo – a construção de uma ermida,
um mosteiro ou uma obra de caridade – percorriam o território esmolando. Esses
solitários religiosos vestiam normalmente um amplo
vestuário rústico preto, azul ou marrom amarrado na cintura por uma corda ao
modo franciscano. Usavam sandálias de couro ou nenhum calçado. Na cabeça usavam
um chapéu rustico desabado e nas mãos um cajado para auxiliar nas grandes
caminhadas.[8] Esses eremitas errantes possuíam
uma áurea de mistério, um distanciamento dos homens comuns e de seus anseios.
Esse mundo não o pode entender.
Nem mesmo amá-lo. “Se vós fôsseis do mundo – guarda o eremita as palavras de
Jesus Cristo – o mundo amaria o que era seu: porque não sois do mundo, (...)
por isso o mundo. Êste mundo não o pode entender. Nem mesmo perde sua exatidão
no campo sociológico: quem refoge às regras comuns do convívio social, torna-se
um desajustado. (CARRATO, 1963, p. 188).
A religiosidade setecentista das Minas recebe
bem esses intrigantes e desconcertantes homens que vivem fora do mundo. São
sustentados e ajudados em suas empreitadas, que em alguns casos obtiveram
sucessos que perduraram até os dias de hoje. Destaque para o Santuário de Bom
Jesus do Matozinhos de Congonhas do Campo, o Recolhimento de Macaúbas, o
Santuário da Serra da Piedade e o Santuário do Caraça.
O Recolhimento de Nossa Senhora da Conceição
de Macaúbas foi a primeira obra realizada por um eremita nas terras mineiras. Fundado
em 1714 pelo eremita Félix da Costa foi concebido como um convento feminino e
educandário de meninas. Já o eremita Feliciano Mendes, criou na segunda metade
do século XVIII, o santuário de Bom Jesus do Matozinhos após anos de coleta de
fundos. Datam também deste período os outros dois importantes santuários construídos
na Serra do Caraça e da Piedade, fundados respectivamente por Lourenço de Nossa
Senhora e Antônio da Silva Bracarena.[9]
Segundo a tradição corrente, os portugueses
Antônio da Silva Bracarena e Lourenço de Nossa Senhora eram foragidos da
administração pombalina que se refugiaram na Vila Nova da Rainha do Caeté.
Devotos de Nossa Senhora, a quem se achavam devedores por conseguirem fugir da
perseguição do Marquês de Pombal, resolveram erguer um templo em sua homenagem
na serra próxima à vila de Caeté. Os dois eremitas acabaram se desentendendo
devido à localização do templo. Bracarena achava que deveria ser construída no
cimo da Serra e Lourenço queria que fosse construída no lugar denominado
Cavalhada. Essa desavença culminou com o rompimento dos dois eremitas. Lourenço
optou por construir a sua ermida na Serra do Caraça deixando a Serra da Piedade
a Bracarena. A perseguição pombalina aos dois futuros ermitões e a desavença em
terras mineiras não estão comprovadas.[10]
O certo é que Bracarena construiu a ermida dedicada a Nossa Senhora da Piedade
na serra de mesmo nome, que à época já possuía uma áurea mística devido a uma
suposta aparição de Nossa Senhora.
A vocação mística da Serra da
Piedade iniciou-se a partir da lenda da menina muda, considerada muito piedosa,
que avistando no alto da Serra da Piedade, a figura da Virgem com Jesus nos
braços. A Nossa Senhora reapareceu várias vezes e a menina, muda de nascença
foi curada. Outros registros falam da aparição da Virgem a donzelas que
passavam pela Serra.
O historiador Antônio Olyntho dos Santos
Pires informa que, a lenda da aparição da Virgem encantou o rico oficial de
cantaria[11],
natural da Freguesia de São Pedro de Bracarena, Portugal, denominado Antônio da
Silva Bracarena. Este devoto português decidiu construir uma capela em
homenagem a Nossa Senhora, no alto da Serra da Piedade. Para esse fim, contou
com o apoio do Dr. Manoel Coelho Santiago na aquisição da provisão, para a
ereção do templo, assinada pelo Cônego Ignácio Corrêa de Sá em 30 de setembro
de 1767. Segundo esse documento, a ermida deveria ser “fabricada de materiais
perduráveis em boa proporção e arquitetura...”.[12]
[1] FUNDAÇÃO, 1982, p.22,23.
[2] Isso se devia à preocupação da
coroa com os descaminhos do ouro. O Governo colonial desconfiava dos religiosos
regulares por acreditar que tinham mais facilidade para contrabandear o
ouro. (VEIGA, 1998, p. 541,542). As
Ordens Religiosas só poderão se estabelecer em Minas a partir da autorização de
D. João VI, em 1821.
[3] As primeiras irmandades surgidas em Minas Gerais
eram dedicadas ao Santíssimo Sacramento. (BOSCHI,2007, p.66).
[4] (FUNDAÇÃO, 1982, p.24 e 25). No entanto, salientamos que nos fins
do século XVIII e início do XIX, essas irmandades já apresentavam sinais de
decadência
[5] O Concílio criou um cisma
provocando a separação da região da Síria, formando a Igreja Assíria do Oriente.
[6] Em grego Theorokos significa “Mãe de Deus”, Mater
Dei em latim. A festa da Anunciação é comemorada no dia 25 de março.
[7] Rangel, Carlos Henrique e Nunes Cristina Pereira.
Serra da Piedade – Histórico. 27 de novembro de 2004.
Disponível
na Internet:< http://proteuseducacaopatrimonial.blogspot.com.br/2010/01/serra-da-piedade.html>. Acessado em: 02 de abril de
2014.
[8] CARRATO, 1963, p.187.
[9] CARRATO, 1963, p. 192 a 217.
[10] CARRATO, 1963, p. 217,218.
[11]PIRES, 1902 Anno VII,
p. 813.
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