PROTEUS EDUCAÇÃO PATRIMONIAL 22 ANOS

PROTEUS EDUCAÇÃO PATRIMONIAL 22 ANOS

quarta-feira, 9 de março de 2011

CONTOS DOS PATRIMÔNIO CULTURAL II

11

JOSÉ E O CABOCLO



Dezoito horas. José saiu do escritório após mais um dia de trabalho.

O calor ainda incomodava as pessoas, mas uma brisa gostosa passeava pelas ruas aliviando os caminhantes.



José parou na amurada do cais como fazia todos os dias e ficou olhando o rio.

O velho rio quase distante. A ilha sempre maior a cada ano, com suas plantações de milho e casas provisórias.

A noite caia devagar e ele debruçado na mureta descansava assistindo o acender das estrelas.

Foi assim quando não pensava em nada que ouviu um ruído... Um chamado.



- Psiu!



A princípio José achou que era só o murmurar das águas. Não deu muitos ouvidos.



- Psiu! – ouviu novamente. Desta vez teve certeza que era um chamado.



- Quem está aí? – Perguntou.



- Tem alguém com você? – Perguntou a voz.



- Não, estou só. Quem está aí? – Perguntou novamente José.



- Calma, eu já vou me mostrar. Promete que não vai se assustar? – Perguntou a voz.



- Se você demorar a aparecer eu vou embora. – Disse José.



- Olha já vou me mostrar. – falou a voz.



Passou alguns segundos e uma figura pequena e negra subiu a amurada e se sentou ao lado de José.



- Quem é você? Não me parece estranho... – Perguntou José.



- Sou o Caboclo D’água. – Respondeu a pequena figura.



- Caboclo d’água? Pensei que fosse uma lenda.



- Não sou só lenda não. Nem eu nem os outros: A mãe D’água, o Minhocão...



- Eu em..?! – exclamou José assustado.



- Não é preciso ter medo. Só quero conversar com você.

- Por que comigo? – Perguntou José.

- Todo os dias eu te vejo aqui. Me pareceu uma pessoa de confiança.



- Obrigado, mas em que posso te ajudar? – Perguntou José.



- Sabe, o mundo mudou muito. O Rio, o nosso lar, coitado, está minguando de ano para ano. Os peixes sumindo...



- É verdade... É a poluição, o desmatamento...Eu também venho notando isto.



- Cadê os barcos? Não vejo mais os barcos com suas carrancas assustadoras que metiam medo. O apito que chamava... – Reclamou o Caboclo.



- Acabaram. O comércio agora não é feito mais pelo rio. Existem estradas e os caminhões é que transportam as coisas.



- É uma pena... Eu tinha medo dos barcos... mas agora sinto saudades...



José não disse nada, apenas olhou o Rio agora coberto pela escuridão.



- Aqui na margem também mudou muita coisa. O cais era tão bonito... As famílias com suas trouxas de roupas e crianças barulhentas, os carregadores suados com seus fardos...



- Foi demolido...



- Havia uma igreja bonita de duas torres com sinos que gritavam uma linda música...



- Ah, A matriz... Também foi demolida. Construíram uma igreja nova. Não viu? – Perguntou José.



- Vi... Desculpa-me a ignorância de Caboclo D’água, mas não gostei do que vi.

- Te desculpo. Eu também gostava mais da antiga. – Disse José baixinho com medo que alguém ouvisse.



- Para falar a verdade, José, não estou gostando muito das coisas que vejo. Cada ano que passa vejo minha casa-rio mais estreita. Cada ano que passa vejo menos matas... – Menos peixes... Menos animais bebendo água...



- Eu sei. É tudo muito triste...



- As casas José... Porque vocês estão destruindo estas casas tão lindas com suas platibandas recortadas? Porque tanta mudança? – Perguntou o Caboclo.



- É o progresso...



- Progresso é destruir o belo? É mudar tudo para depois não se ter mais raízes ou identificação com o lugar? – Perguntou a pequena figura.

- Dizem que progresso é o novo, o moderno... – Explicou José.



- Não dá para conciliar? O homem não consegue evoluir sem destruir o seu passado?



- Eu nunca pensei nisso. Acho que isso deveria ser tentado. Muitas vezes, passando por uma rua e vendo um lote vago onde antes existia um casarão me entristecia. Era como se me tivessem arrancado um pedaço...



- É ... Eu sei que tudo muda que o tempo não para nunca, mas algumas coisas precisam ficar para que a gente possa continuar.- Disse o Caboclo.



- Eu concordo... O Rio, as casas, as pedras das ruas fazem parte da nossa vida, do nosso dia a dia... – disse José.



- É único... Nas minhas andanças subindo e descendo o Rio, o que vi e vejo aqui, só existe aqui.



- É mesmo? – Estranhou José.



- É sim. Cada lugar é único. Tem belezas próprias. Nem melhor, nem pior que outros lugares. Diferentes e únicas. Januária é única.



- Pensando bem é mesmo. Comparando com as outras cidades à beira do Rio ela é diferente em sua beleza: suas ruas, casas, pessoas, festas... As outras também o são...



- Isso mesmo. E o Rio São Francisco, esse em que vivo, as banha, as vê, as observa, as acompanha... – Disse o Caboclo.



- É de todas... Um patrimônio de todas.



- É todas têm suas belezas próprias, mas o Rio é uma beleza de todas.



- Mas o que pode ser feito para defendermos essas belezas todas?



- Ah José, eu não posso fazer muito... Como você disse, sou uma lenda que também depende de vocês para existir. Mas você pode. Você e toda a comunidade podem começar uma campanha para defender a memória da cidade, das outras cidades ribeirinhas e claro, do Rio.



- Suas histórias e seu patrimônio edificado, natural, Folclórico, suas lendas e tradições... – Completou José.

- Isso mesmo. As casas dos homens do passado, as marcas dos índios, o Rio do passado, presente e do futuro, as festas, o artesanato...

- Caboclo, que bom ter conversado com você. Vou reunir o pessoal do meu serviço, meus amigos e familiares para estudarmos soluções para salvar nosso patrimônio.

- Faça isto José. Eu aqui no fundo do Rio vou torcer por você porque também o meu futuro depende de vocês homens. Agora tenho que ir, mas nos veremos mais vezes...



Os dois se abraçaram numa calorosa despedida e o Caboclo como num passe de mágica desapareceu na escuridão. José sorriu feliz. Não via a hora de encontrar os amigos para começar sua campanha para salvar a memória da sua cidade, das cidades vizinhas e o Rio São Francisco.



FIM





12

METRÓPOLE





A família estava reunida na sala assistindo televisão como acontecia todos os dias.

Vovô Carlos lia um jornal. O Sr. Manoel tomava café com dona Lúcia e Vovó Maria sentados à mesa de olhos fixos na tela do aparelho. Paulinho e Rita sentados no tapete também pareciam hipnotizados pela TV.

De repente sem nenhum aviso a energia desapareceu e todos se viram no escuro.



- Mas que droga! Sem luz de novo. – Gritou Paulinho.



- Calma meu filho, já vai voltar. - disse Dona Lúcia tranqüilizando o garoto. Levantou-se e foi buscar uma vela.



- Ah mamãe, o que vamos fazer enquanto a energia não volta? – Perguntou Rita.



- Eu vou me deitar – Disse vovó Maria se encaminhando para o corredor onde ficavam os quartos.



- O vovô Carlos pode contar uma estória para vocês como fez da outra vez. – Disse Dona Lúcia.



- É mesmo vovô, conte para gente a história do Brasil. – Gritou Rita com o sorriso iluminado pela vela que Dona Lúcia segurava nas mãos.



- Ah não! Historia do Brasil de novo... – Gritou Paulinho lamentando.



- Claro que não. Vou contar uma nova história... A história de um prédio da nossa cidade.



- Eu em! História de prédio? – Estranhou Paulinho.



- É, vou contar a história de uma casa que foi construída para ser teatro de Belo Horizonte. – Disse o avô.



- Então tá. Conte vovô. – Disse Rita se sentando perto do Vovô Carlos.



- Então lá vai... No inicio da nossa cidade não havia muita coisa para as pessoas fazerem nas horas de folga. Além do Parque Municipal existiam alguns cinemas improvisados que também apresentavam peças de teatro... Tudo muito simples e sem conforto. O povo reclamou exigindo que a prefeitura construísse um Teatro de verdade, que tivesse conforto e pudesse receber grupos de teatro de todo o país.



- A prefeitura construiu o tal Teatro? – Perguntou Rita.



- Claro, né bobona, se não o vovô não estaria contando a história. – Ralhou Paulinho.

- Construiu sim minha neta. Construiu em 1906, um lindo teatro que recebeu o nome de Teatro Municipal... Era grande e toda a sua decoração interior e os móveis foram importados da Bélgica e dos Estados Unidos.



- Trouxeram as coisas de outros países?- Perguntou Rita.



- É minha neta, no nosso país ainda não havia materiais e móveis de qualidade tão boa como os destes países.



- E era chique né? – Falou Paulinho.



- - Isso também Paulinho, era chique importar as coisas da Europa e dos Estados Unidos... Bem, o Teatro foi inaugurado e passou a receber os grupos teatrais de todo o Brasil e até de fora. A população lotava a casa para ver os espetáculos, assistir exposições de arte e outros eventos. Era um acontecimento. As pessoas se vestiam com as melhores roupas...



- Só para ir ao Teatro? – Perguntou Paulinho.



- É meu neto, não havia televisão ou outra grande atração na cidade. Ir ao teatro era a oportunidade de encontrar pessoas, namorar...Ma nem todo mundo estava satisfeito com o Teatro. Havia algumas pessoas que o achavam pequeno e até feio...



- Sempre tem gente do contra. A cidade não tinha nada antes e quando a prefeitura constrói um Teatro ao invés de agradecerem ficam falando mal...- Se irritou Paulinho.



- É meu filho, algumas pessoas estão sempre insatisfeitas... Mas continuando a história, a prefeitura acabou por concordar com estas pessoas e resolveu melhorar o teatro. Mudaram todo o interior e as fachadas... Parecia um novo prédio.



- Agora todo mundo ficou satisfeito... – Falou Rita se ajeitado no sofá.



- Não minha filha...



- Não? – Perguntou Paulinho indignado.



- Não. Um prefeito muito moderno achou que a cidade precisava de um Teatro maior e mais bonito.



- E como ficou o nosso teatro? – Perguntou o menino.



- O prefeito vendeu para uma empresa de cinemas.

- Virou Cinema Municipal? – Perguntou Rita.

- Não. Recebeu o nome de Cine Teatro Metrópole. – Respondeu o avô.

- Bem mais bonito. – Falou a menina.



- É, passou por nova reforma para ser um grande espaço de diversão... Tinha capacidade para receber mais de mil pessoas...



- Nossa! É muita gente... Não conheço nenhum cinema tão grande. – Espantou-se Paulinho.



- Era grande mesmo. Mas nessa época existiam em todo país vários cinemas tão grandes ou até maiores que o Cine Teatro Metrópole. Estes cinemas eram como se fossem templos...



- Como igrejas? – Perguntou Paulinho.



- Eram sagrados, respeitados. E assim como no tempo do Teatro Municipal, as pessoas faziam das seções de cinema um acontecimento memorável. Vestiam suas melhores roupas, um desfile...



- Eu hem! Tudo isto para ver um filme... – Estranhou Rita.



- Lembrem-se que as coisas eram diferentes... Os filmes demoravam para chegar a cidade e o cinema era o ponto de encontro de toda a população. Entrar no Cinema era como entrar no mundo do faz de contas por causa da beleza da decoração da sua entrada... Por causa da música que tocava antes de começar a seção...



- Devia ser divertido assistir um filme de aventura com tanta gente...



- E era meu filho...Depois do cinema as pessoas saiam para jantar para comentar o filme ou passear. Algumas pessoas assistiam várias vezes à mesma fita.



- Eu também faço isto... Assistindo no vídeo cassete os desenhos que mais gosto... – Falou Rita.



- É, naquela época não havia vídeo cassete... E o Cine Teatro Metrópole foi seguindo em frente divertindo muitas pessoas por muitos anos.



- Eu mesmo assisti muitos filmes lá. – Disse o Sr. Manuel que ouvia a história bem quietinho ao lado de Dona Lúcia.



- É mesmo. Quando começamos a namorar íamos às matines assistir os lançamentos... – Completou Dona Lúcia.



- Nossa! Foi há muito tempo... – Falou Rita.



- É, mais ou menos. – Riu Dona Lúcia.

- Bem, mas os tempos foram mudando, veio a televisão e a pompa foi ficando para traz. Ir ao cinema virou uma atividade comum. A freqüência foi diminuindo... Os grandes cinemas foram fechando...

- Fechando ou virando Igrejas. – Completou Sr. Manuel.



- É, alguns viraram igrejas.



- Viraram outro tipo de templo, né? – Falou Paulinho.



- Isto mesmo.



- E o nosso Cinema, o que aconteceu com ele? – Perguntou Rita.



- O cine Teatro Metrópole resistiu até que seu proprietário resolveu vendê-lo para um banco.



- Nossa! E o povo deixou? – Perguntou Paulinho.



- Parte da população não gostou. Estudantes, arquitetos, professores... O órgão estadual de proteção do patrimônio cultural, o IEPHA/MG tratou de tombar o prédio.



- Tombar? Eles também queriam derrubar o prédio? – Perguntou Rita.



- Não minha filha, tombar não é derrubar... Significa que o prédio não poderia ser destruído nem modificado porque agora era importante para todo o Estado de Minas Gerais. – Explicou o avô.



- Ah bom... Reconheceram que o Metrópole era muito importante e que devia ser preservado... – Falou aliviado o menino.



- A empresa proprietária não concordou e mandou documentos assinados por arquitetos que diziam que o prédio não era importante. Mas o IEPHA/MG também convidou outras pessoas para falar sobre a importância do Cinema e não mudou a decisão: manteve o tombamento... Mas para que isto acontecesse de verdade o governador deveria assinar um decreto de tombamento...



- Claro que ele assinou né? – Falou Rita.



- Não assinou.



- Mas como? O tal órgão de proteção do patrimônio não tombou o prédio por considerá-lo importante? – Perguntou indignado o menino.

- É, mas o governador não estava muito convencido... Criou uma Comissão Especial para analisar o caso...



- Vovô me explica uma coisa, o tal IEPHA/MG não é um órgão do governo criado só para cuidar do patrimônio cultural? – perguntou Paulinho.



- É sim.



- Então, ele é bem preparado para saber o que é patrimônio cultural e o que não é...



- É sim meu filho. – Disse o avô.



- Não entendi porque o governador ficou em dúvida.



- Ninguém entendeu meu filho. – Explicou o avô.



- E aí, o que aconteceu?- Perguntou Rita.



- O Cinema foi fechado apesar da todo mundo ter reclamado. Aconteceram várias passeatas...



- Passeatas? – Perguntou Rita.



- É, as pessoas saiam às ruas com cartazes pedindo a preservação do Cinema...



- Que coisa legal. – Falou Paulinho entusiasmado.



- É sim e ainda fizeram um abaixo-assinado que é uma coleta de assinaturas das pessoas em favor da preservação do prédio para ser entregue ao governo...



- Depois disso é claro que a Comissão Especial acabou concordando com o tombamento... – Falou Paulinho.



- Não foi bem assim que as coisas aconteceram. A comissão se reuniu algumas vezes mas não chegou a nenhuma decisão. Enquanto isto a empresa dona do cinema foi destruindo o prédio por dentro, retirando as cadeiras e toda a decoração...



- Mas que absurdo! O Cinema não estava tombado? – Perguntou o menino.



- Sim, estava tombado provisoriamente e a destruição interna era uma coisa errada.



- Prenderam o proprietário? – Perguntou Rita.



- Não...



- Pararam a obra? – perguntou Paulinho se levantando.



- Não...

- Mas que governo é esse? As leis não são para serem cumpridas? – Perguntou o menino.



- É meu filho, as leis deveriam ser cumpridas, mas neste caso não foram. O IEPHA/MG bem que tentou entrar no cinema e paralisar as obras, mas não obteve nenhum apoio do governo. – Explicou o avô.



- Esta história está muito mal contada vovô... Governador que não tomba, leis que não são cumpridas... Não estou gostando... – Falou Rita chateada.



- Eu também não gostei minha filha. Mas o pior estava para acontecer... Diante da incapacidade de paralisar as obras e devido à destruição interna o IEPHA/MG representado pela sua presidente resolveu sugerir que o Cinema não fosse tombado. No mesmo documento pediu que a empresa que destruiu o interior fosse punida e que a empresa compradora construísse um teatro no local.



- Não acredito! – Gritou Paulinho.



- Isto é um absurdo! Como que a presidente do IEPHA/MG faz uma coisa desta. O prédio não era importante? Não estava tombado? Então tinha que ser preservado. – continuou o garoto.



- Também não concordei com a atitude da presidente, principalmente pelas conseqüências.



- Ai meu Deus. – Lamentou Rita.



- É minha neta... A Comissão Especial que até aquele momento não tinha resolvido nada. Adorou receber a carta da presidente do IEPHA/MG. Concordou com tudo que ela escrevera e mandou para o Governador...



- Ah, esse ai também deve ter adorado... – Falou Paulinho nervoso.



- Diante dos documentos elaborados pela presidente do IEPHA/MG e pela Comissão Especial, o governador decidiu pelo não tombamento do Cinema...



- Que coisa triste...- Lamentou Rita.



- Que coisa feia! – Gritou Paulinho.



- O cinema foi demolido apesar de tantas vozes contrarias. Toda a história, todas as lembranças foram perdidas a golpes de marretas... Em seu lugar surgiu um grande prédio de um banco...

- E a empresa proprietária foi castigada? – Perguntou Rita.



- Não foi...



- Eu sabia. – Disse Paulinho cruzando os braços.

- E o teatro que a presidente pediu para ser construído no local?



- Não foi construído...



- Que grande vergonha... – Lamentou novamente Paulinho.



- Assim, após uma luta que durou meses a cidade perdeu um importante marco de sua memória destruído pela ganância e desrespeito de alguns poucos. A cidade ficou mais pobre... Construir e adquirir história demora algum tempo, mas demolir é um ato simples...



- Que fim triste...- Disse Rita.



- Ainda não é o fim minha neta. O que aconteceu com o Metrópole serviu para que muita gente começasse a estudar, a aprender como lidar com a preservação e com todos os problemas relacionados com ela. Os erros não seriam cometidos novamente. E não foram. O Metrópole virou símbolo de luta e resistência contra o vandalismo e o que aconteceu com ele nunca mais se repetiu e te garanto, ninguém mais vai permitir que aconteça.



- Mas o que pode ser feito para impedir que isto se repita com outros prédios? – Perguntou Paulinho.



- A participação de toda a população na defesa de sua memória. Somente a união da comunidade com os órgãos de preservação pode impedir que governantes e proprietários gananciosos destruam nossa memória.



- Apoiado vovô. Aposto que se todo mundo soubesse como é importante preservar a memória e as coisas antigas ninguém teria coragem de destruí-las. – Falou Paulinho.



Naquele instante a luz voltou a iluminar a sala. Desta vez ninguém ligou a televisão. Ficaram todos discutindo soluções para a melhor forma de se preservar o patrimônio cultural da cidade, do estado e do país.



FIM

13



O TREM



Vovô Carlos, Paulinho e Rita estavam viajando de carro para conhecerem a cidade de São João Del Rei. Os meninos não se continham de alegria correndo os olhos pela estrada.



- Falta muito Vovô? – Perguntou Rita se inclinado para o avô que dirigia com toda a atenção.



- Ah, minha neta, apenas começamos a nossa viagem.



- Fica fria Rita. Curte a paisagem... E os buracos...- Falou Paulinho balançando com o solavanco do carro.



Vovô Carlos riu.



- É, realmente a estrada está bastante ruim. – Disse o velho senhor.



- Se continuar assim vai demorar muito para chegar. – Falou o menino.



- É mesmo meu menino. Antigamente... Quando eu era criança, as viagens demoravam, mas eram bem seguras e divertidas...



- As estradas eram melhores? – Perguntou Rita.



- Ah... Minha menina, quando eu era pequeno viajava de Trem e as estradas de ferro eram muito seguras...



- De Trem? Eu nunca ví um Trem de ferro... Quero dizer, só ví no cinema e na televisão. Coisas enormes que andavam em trilhos de ferro. Pareciam grandes cobras. – Disse Paulinho.



- Parece que não tem mais Trem hoje em dia... Só existem os Trens de metrô... – Falou a menina.



- É mesmo minha neta, as viagens de Trem estão acabando ou já acabaram... Mas quando eu era criança as viagens para outras cidades eram feitas de Trem.



- E como era viajar de Trem? – Perguntou Rita curiosa.



- Era bem divertido. O Trem passava por túneis. Passava sobre rios... Parava em todas as estações para deixar ou pegar passageiros e cargas... – Contou o avô emocionado.



- Estações? –Perguntou a menina.

- Devia ser como os pontos de ônibus ou as rodoviárias, não é Vovô? – Disse Paulinho.

- Eram mais ou menos isto. Havia estações de todos os tipos: Pequenas, grandes... Todas lindas. Todas cheias de gente entrando e saindo dos Trens ou despedindo dos amigos ou parentes ou esperando os que chegavam... Também havia aqueles que vendiam coisas aos passageiros: pasteis, doces, picolés, qualquer coisa... As pessoas quando viam o Trem paravam para acenar...



- Uma festa... – Exclamou a menina. O avô riu.



- Para as crianças era uma festa...O apito do Trem. O barulho repetitivo das engrenagens gritando: “café com pão manteiga não”...



- Como? O Trem falava?! – Perguntou Rita assustada.



- Não, minha neta, quando o Trem andava fazia um barulho que parecia dizer repetidamente: “café com pão manteiga não. Café com pão manteiga não”. – Respondeu o avô rindo.



- Que coisa engraçada. – Riu a menina.



- Tudo isto acabou? – Perguntou Paulinho.



- As viagens acabaram ou são poucas... – Disse o velho senhor.



- E as estações? – Perguntou a menina.



- Algumas foram destruídas, outras estão abandonadas ou com outros usos...



- Por que Vovô? Por que as viagens de Trem acabaram? – Perguntou Paulinho curioso.



- Ah... É uma longa história. Mas antes de falar de como acabaram acho que devíamos saber como começaram. Não acham? – Perguntou o Vovô Carlos.



- É mesmo Vovô, a gente não sabe como tudo começou. – Falou Paulinho.



- E como começou? – Perguntou Rita. O Vovô riu.



- Lá vamos nós... A ferrovia com suas locomotivas e estradas surgiram no país chamado Inglaterra há quase duzentos anos atrás e facilitaram o transporte de mercadorias e pessoas que antes eram feitas em carroças cavalos ou burros. Espalharam-se rapidamente por todos os países da Europa, Ásia e para os Estados Unidos. Aqui no Brasil a história da ferrovia começou de fato há pouco mais de cem anos atrás com o empresário Irineu Evangelista de Souza... Ele era um homem de visão, enxergada as coisas melhor que os outros...



- Tinha visão de raio x? – Perguntou a menina.

- Não é isto bobona... – Ralhou Paulinho.



- Então o que é? – Perguntou a menina.



- Eu também não sei. – Falou o menino sem graça. O Vovô Carlos riu.



- Eu explico. O Irineu percebia as coisas melhor que os outros empresários de seu tempo. Percebeu que as ferrovias poderiam transportar grandes quantidades de produtos do interior para o litoral com mais rapidez que as tropas de burros...Queria trazer a ferrovia para o Brasil e trouxe.



- Sozinho? – Perguntou Paulinho.



- Praticamente sozinho. Ele ligou um lugar chamado Porto Estrela na Baia de Guanabara à Serra de Petrópolis inaugurando a primeira Estrada de Ferro do Brasil no ano de 1854.Uma inauguração em grande estilo, com a presença do Imperador D. Pedro II e um monte de gente importante. Por causa deste feito ele recebeu o título de Barão de Mauá e mais tarde passou a Visconde.



- E depois ele fez novas estradas? – Perguntou Paulinho.



- Bem que ele queria levar a ferrovia para o interior do país, mas teve vários problemas políticos e financeiros... – Disse o avô.



- Mas se ele não fez, quem fez? – Perguntou Rita.



- Ah, o governo imperial criou a Estrada de Ferro D.Pedro II que se espalhou pelo interior e chegou aqui em Minas Gerais. Depois vieram as redes ferroviárias particulares que foram unindo as cidades deste Brasil com seus vários ramais. Aqui em Minas existiam 18 redes ferroviárias...



- Nossa! Que tantão! – Espantou-se a menina.



- Muitas né? E estas Estradas levavam produtos do interior para os portos do litoral e traziam produtos importados para as cidades distantes. As Marias-fumaças traziam o progresso e as novidades...



- Marias-Fumaças? Quem são essas mulheres? – Perguntou Rita.



- Não são mulheres, Maria-Fumaça era o nome carinhoso das máquinas... Os Trens antigos... Soltavam muita fumaça pelas chaminés...A Estrada de Ferro D. Pedro II, depois que o Brasil passou a ser uma república, foi transformada na Estrada de Ferro Central do Brasil. Muitas cidades nasceram por causa das estradas de ferro. Muitas só sobreviveram por causa das estradas de ferro...Bem, em 1957, o governo criou a Rede Ferroviária Federal S. A. unindo todas as ferrovias para melhorar o transporte e solucionar os problemas que estavam ocorrendo.

- Problemas?



- É, algumas ferrovias tinham prejuízos ou projetos mal elaborados... A união pretendia acabar com estes problemas...



- E acabou? – Perguntou Rita.



- É claro que não, né Rita! Se não a gente não estaria viajando de carro nesta estrada ruím. – Falou Paulinho xingando a irmã.



- É mesmo Paulinho, a Rede Ferroviária Federal não resolveu os problemas... Depois vieram as rodovias com suas estradas asfaltadas, os ônibus e os caminhões... O Brasil optou por transportar os produtos agrícolas e minerais nestes caminhões que vemos nesta estrada...



- Que opção burra... – Xingou Rita.



- E tudo acabou.... – Falou Paulinho triste.



- A Rede Ferroviária Federal – a RFFSA – foi privatizada nos anos noventa, passando para várias empresas. O transporte de passageiros parou... Muitos trechos foram completamente destruídos... As estações abandonadas ou recebendo novos usos...



- E agora? – Perguntou Rita querendo saber como tudo isto iria terminar.



- Agora... Bem, existem movimentos de amantes das ferrovias tentando salvar as estações e os conjuntos formados pelos galpões e casas da rede e até reativar alguns trechos das estradas para levar turistas... Algumas das estações viraram museus onde foram colocados Trens, objetos e ferramentas usadas pelos maquinistas e trabalhadores ferroviários e até fotografias antigas. Estes museus contam um pouco da história das ferrovias e das pessoas que trabalharam nelas...Além disto alguns conjuntos foram preservados pelos governos estaduais e municipais... Muitas cidades estão preservando os conjuntos ferroviários e suas estações utilizando-os como sedes administrativas, bibliotecas, casas de cultura e outros tantos usos...



- Eu queria tanto andar de Trem...O senhor nos leva? – Perguntou Rita.



- Claro que levo. – Respondeu prontamente o Avô.



- Eu queria conhecer um museu ferroviário... – Pediu Paulinho.



- Eu prometo que levo vocês para conhecerem um museu ferroviário... Olhem estamos quase chegando... São João Del Rei tem uma estação muito bonita e possui um museu ferroviário muito interessante...

Fim





QUESTIONÁRIO



1 – Sua cidade é servida por linha férrea? Qual Estrada de Ferro?



2 – Sua cidade tem uma estação ferroviária? Quando foi construída?



3 – Funciona como estação? Se a resposta for não, quando deixou de funcionar como estação?



4 – Como está sendo utilizada a sua estação? Concorda com o uso atual? Por quê?



5 – Existem outros prédios da rede ou casas de ferroviários? Como são utilizados?



6 – Quais os produtos da sua terra que eram transportados por trem de ferro?



7 – Quais os produtos que chegavam a sua cidade por trem de ferro?



8 – Como foi sua primeira viagem de trem? Como se sentiu viajando de trem?



9 - Qual a lembrança mais marcante que você tem da ferrovia?



10 – A ferrovia tem algum significado para você e sua vida? Por quê?

14



IMAGENS





O homem depositou o pacote sobre a mesa e limpou o suor da testa.



- Está aí. Não foi fácil... Tinha alarme... – Disse homem olhando para o senhor de cabelos brancos que segurava um copo de bebida.



- O que estou te pagando cobre todo o risco... – Disse o homem de cabelos brancos.



- Claro senhor Jorge, eu não estou reclamando. – Disse o homem suado.



- Tome o seu cheque e pode ir. – O homem suado limpou novamente a testa e partiu.



Jorge rasgou o embrulho e sorriu quando viu a bela imagem de Santo Antônio que havia adquirido. Deu uma volta ao redor da mesa admirando a peça e sorriu novamente.



- Mestre Piranga... Sim... Tenho certeza... Agora vou te apresentar a sua nova casa. – Disse pegando a imagem. Carregou-a por um corredor e parou na ultima porta a direita. Segurou a imagem entre o braço esquerdo e abriu o pesado cadeado. Era um quarto pequeno com apenas uma janela bem fechada.



Acendeu a luz e sorriu para as várias peças sobre uma grande mesa.

- Mais uma para a minha coleção...Santo Antônio apresento-lhe seus irmãos. – Disse ajeitando a imagem do santo entre uma Nossa Senhora do Rosário e um São José.



Correu os olhos novamente para o seu acervo e sorriu feliz. Apagou a luz e fechou a porta.



O ruído ele ouviu quando ainda colocava o cadeado sobre o trinco.

Eram vozes.

Parou de mexer na porta e esperou.

Colocou o ouvido na porta e esperou.

As vozes começaram tímidas.



- Mais um... Como vai Santo Antônio, seja bem vindo ao nosso humilde lar. – Disse a Nossa Senhora ajeitando a coroa.



- Obrigado Senhora, o prazer é todo meu... Mas... Onde estou? A ultima coisa de que me lembro foi de ter sido enfiado em um saco... – Disse o Santo olhando ao redor, custando a enxergar naquela escuridão.

- Isto aconteceu com todos nós... – Disse um São João Batista que estava mais no canto ao lado de uma Santa Efigênia.



- Fui roubado? – Perguntou o Santo assustado.



- Foi. Todos nós fomos. – Falou uma Nossa Senhora de Lourdes.



- Até hoje tenho pesadelos por causa daqueles brutos que me tiraram do altar... Olha, quebraram uma de minhas asas... – Falou um anjo mostrando a asa com um grande remendo.



- Traumatizado, coitado... Nem dorme direito. – Completou a Nossa Senhora do Rosário balançando a cabeça.



- Eu nunca pensei que isto iria acontecer comigo... Já haviam me falado destas coisas. Mas na minha igreja foi a primeira vez...



- Ai meu filho, na minha igreja aconteceu tantas vezes... Ai que saudades dos velhos tempos em que éramos tratadas com respeito... Tantos anos... Quase trezentos anos atrás. – Lamentou a Nossa Senhora do Rosário.



- A senhora esta muito bem... Não parece tão antiga... – Falou o Santo Antônio admirando a Imagem da Senhora.



- Ah meu filho, tenho alguns probleminhas, uma pequena rachadura, a pintura do meu manto está desgastada...



- Não se nota. – Disse o Santo.



- Sou uma boa peça... Acho que todas nos somos. – Completou a Senhora.



- Aleijadinho?



- Não... Jorge diz que sim. Mas fui feita pelos ajudantes dele... – Respondeu a Nossa Senhora do Rosário.



- A senhora faria o maior sucesso na minha igreja. A nossa “Nossa Senhora do Rosário” é pequena e singela – Elogiou o Santo Antônio.



- Ah meu filho, não quero “pegar” o lugar de ninguém...Queria voltar para a minha Igreja...



- Eu sou uma peça portuguesa. Vim diretamente do Porto... Chique né? – Falou uma Nossa Senhora da Conceição de mais de um metro.



- Muito... – Exclamou o Santo Antônio.



- Eu sou paulista mesmo... Taubaté. E você? – Perguntou o São José.

- Fui feito por um mestre que trabalhou muito na minha cidade... Mas não posso falar o nome dele... É segredo... – Explicou o Santo Novato.



- Conheci um Santo Antônio... Ficava no nicho esquerdo do meu altar... Pegou cupim... Uma tragédia... – Lamentou a Nossa Senhora da Conceição.



- Nossa! E o que aconteceu? – Perguntou o santo curioso.



- Levaram ele para um ateliê de restauração, voltou lindo.



- Que bom... Sei de um caso gravíssimo... Epidemia mesmo... Pegou em todo mundo. – Disse o São José pensativo.



- E aí?



- Ah, perdemos um São João Batista, uma Nossa Senhora do Rosário e uma Santa Rita...- Explicou o São José.



- Catástrofe! Isto acontece quando a comunidade não cuida direito da igreja...



- Somos muito bem cuidados aqui. Jorge nos limpa uma vez por semana... – Falou um Cristo que segurava uma grande cruz.



- Mas isto aqui não é uma igreja... É escuro e pequeno... – Disse o Santo novato.

- Ai que saudade da minha igreja... As orações, as velas iluminando...O povo e os pedidos do povo... – Lamentou a Senhora do Rosário balançando o terço.



- Não tem reza aqui? – Espantou o Santo recém-chegado.



- Não tem nada, só escuridão e a visita do Jorge de vez em quando.



- E ele reza?



- Não... Apenas fica admirando...Nada de preces... – Respondeu o São Joaquim que até então apenas ouvia.



- Mas que coisa egoísta... Na igreja somos adoradas por multidões... E as orações... Adorava ouvir os pedidos e tentar atendê-los...



- Aposto que eram sobre casamento... – Falou um Menino Jesus deitado em uma manjedoura.



- A maioria dos pedidos era sobre casamento. – Confirmou o Santo rindo.



- Ai, e as procissões... Adorava sair pelas ruas no andor. Adorada ver toda a população da cidade... Subindo ladeiras... Perdi a conta de quantas vezes sai pelas ruas... Nunca era igual. Ás vezes as novidades não eram boas. Sentia a falta de uma casa, percebia um prédio novo e feio ocupando o lugar de um sobrado lindo que existia perto da igreja... Uma mudança no ritual... Mudança para pior... – Lamentou a Nossa Senhora do Rosário ajeitando o manto.



- E os veículos... Quando vi o primeiro automóvel quase desci do andor e sai correndo. – Disse o São José alisando a barba.



- E os cantos... Na sua igreja tinha música? Na minha igreja cantava-se muito a luz de velas quando eu era uma imagem novinha. O órgão com aquele lindo som do Céu... Depois instalaram luz elétrica e a igreja ficou muito mais clara...- Falou um São Sebastião soltando um dos braços para evitar a cãibra.



- Adoro a Semana Santa e a decoração das ruas...Saia da minha Igreja e ia para a Igreja de Minha mãe... – Falou o Cristo pensativo.



- Ai meu Deus que saudades do Congado... – Lamentou novamente a Nossa Senhora do Rosário.



- Meu povo deve estar muito triste...- Falou o Santo Antônio forçando a vista, tentando enxergar melhor os companheiros.



- Aposto que sim. – Falou o Menino Jesus balançando as perninhas.



- E o Jorge que nem reza... – Disse o Cristo ajeitando a cruz no ombro.



- Moço mais egoísta... – Falou Santa Efigênia.



- Será que ele não tem olhos para ver o que está fazendo com a gente e com o nosso povo? – Perguntou a Santa Luzia depositando o prato na mesa.



- Se pelo menos fosse um museu... No museu as pessoas nos visitam... Já pertenci a um museu...- Falou o Cristo.



- Museu! Deus me livre! Sou uma santa fui feita para ser adorada e louvada. No museu somos objetos de arte. – Reclamou a Santa Rita.



- Mas é melhor que isto aqui. – Falou o Cristo.



- Moço egoísta... E pensar que estou aqui há quinze anos... – Lamentou novamente a Santa Efigênia.

No lado de fora Jorge ouvia a conversa e seu coração inicialmente assustado estava agora carregado de tristeza.

A principio pensou que fosse efeito da bebida. Andava bebendo quase todos os dias àquela hora da noite. Depois achou que não. Não era o efeito de bebida. Era uma conversa real. Muito real... E séria.



As lágrimas trasbordavam dos olhos banhando-lhe a face e um grande sentimento de culpa apertava-lhe o peito.

Via os altares vazios e o choro dos fiéis lamentando a perda dos santos de sua devoção. Ouvia o sermão duro do padre pedindo providências. Via os andores vazios... As beatas chorando... As procissões empobrecidas...



Via o quarto com os olhos dos santos: escuro silencioso...Sem preces, sem luz de velas...



As lagrimas agora molhavam sua camisa. Enxugou os olhos e sem querer bateu com a mão no trinco provocando um forte ruído metálico.



A conversa cessou.

Jorge não precisava ouvir mais nada.



Abriu a porta e encontrou o quarto como havia deixado: em silêncio. O Santo Antônio estava lá entre o São José e a falante Nossa Senhora do Rosário.



Parou ao lado da peça de Nossa Senhora do Rosário e acariciou-lhe o rosto. Depois pegou o prato da Santa Luzia que se encontrava na mesa e colocou sobre a mão estendida da santa.



- Meus santos e minhas santas, lamento muito o que tenho feito com os senhores e suas comunidades... Lamento do fundo do meu coração... A partir de amanhã providenciarei o retorno de todos às suas igrejas... – Disse ajoelhando no chão frio do quarto e iniciando uma silenciosa oração...

FIM













15



VOVÔ CARLOS E RITA – PATRIMÔNIO, O QUE É?



Vovô Carlos estava sentado na varanda lendo jornal quando Rita chegou de mansinho.



- Vovô, posso te fazer uma pergunta? – Perguntou a menina.

O avô fechou o jornal e sorriu.



- Claro minha neta, O que você quer perguntar?



- Vi na televisão que é importante preservar o patrimônio cultural... Não entendi muito bem o que eles queriam dizer...

- Você quer saber o que é patrimônio cultural?



- É, mostraram igrejas e cidades com casas antigas...



- Pois é minha neta. Patrimônio cultural são igrejas e casas antigas e muitas outras coisas...



- Mas porque temos que preservar tudo isto? – Perguntou a menina sentando ao lado do avô ali naquele banco confortável da varanda.



- Bem Rita, vamos pensar um pouco...Quando você quer chamar o seu irmão como você faz?

- Uai Vovô, eu grito o nome dele...



- Qual é o nome dele?



-Ora vovô, é Paulo... Paulinho... O senhor sabe...



-Paulinho... Se eu falar Paulinho você sabe de quem eu estou falando não é?

-É...

- Pois então... Apesar de existirem outros meninos com nome Paulo, para nós da família, Paulo é o nosso Paulinho, seu irmão.



- É mesmo...



-Mas será que nós só conseguimos identificar o Paulinho pelo nome? – Perguntou o avô.

-Acho que não...



-O que mais é o Paulinho?



-Um menino de dez anos,de cabelos pretos,chato...



-Inteligente e bonito – Completou o avô.

-Tá bom, inteligente até pode ser mas bonito...



O Vovô riu.

-Está vendo? Conseguimos identificar o Paulinho... E Você? Quem é você?

-Eu? Eu sou a Rita, menina de seis anos, de cabelos pretos com tranças, que gosta de desenho e de desenhar, de ver novela e das estórias do meu avô. – Disse ela sorrindo.



-Menina inteligente, bonita, sapeca, curiosa...



-é...

-E essa menina Rita tem coisas que são só dela, não é?



-É sim. Tenho um quarto, uma cama, muitos vestidos, muitas bonecas e brinquedos e o cachorrinho que papai me deu...O Totó.



-Muitas coisas... E essas coisas são muito importantes para você?- Perguntou o avô.

Ah são...



-Por quê? – Perguntou Vovô Carlos.



-Porque eu gosto delas...



-Te fazem feliz?



-Fazem...



-Por quê?



-ah, vovô, o quarto é onde fico brincando com o Totó, com as bonecas... A cama é tão macia...



-Quando você viaja fica com saudades delas?



-Fico... Até acho estranho a cama dos lugares...



-E se sua mãe pegasse a sua cama, suas bonecas e o Totó e desse para alguém deixando o seu quarto vazio?



-Nossa Vovô! Mamãe não ia fazer uma coisa dessa comigo...

-Eu sei que não... Mas vamos fazer de conta...



-Eu ia ficar muito triste... Ia chorar muito... Como eu ia brincar? Com quem ia brincar? Onde ia dormir? – Disse a menina nervosa.



-Essas coisas todas são os seu bens... O seu patrimônio...São importantes para você e até falam muito de como você é e vive...O Paulinho tem as coisas dele. Seu pai e sua mãe também...Eu também tenho. E cada coisa fala um pouco do seu dono. Contam alguma coisa sobre ele.



-É mesmo... O Paulinho gosta de futebol... Tem uma bola toda velha que ele adora...

-Somos todos diferentes fisicamente e nos gostos... Temos coisas que são importantes para nós...Eu tenho fotos que me lembram da minha juventude...De vez em quando folheio o álbum para matar a saudade...



-Mamãe também tem fotos dela e nossa...



-Minha filha, assim como nós temos nossa maneira de ser e coisas que são importantes para nós como indivíduos, existem aqueles bens que são importantes para todos nós juntos...



-A casa?



-A casa para a nossa família é muito importante. Para as pessoas do bairro, a praça, o supermercado, a rua são importantes...



-A escola é muito importante para mim e para todos os meus colegas...



-Viu? Como vivemos em grupos existem coisas que são importante para o grupo por vários motivos: Padaria, supermercado,ônibus, locadora, restaurante...



Existem outros bens que são importante porque identificam uma comunidade.

-Como a cor do meu cabelo?



-Mais ou menos isto... Um lugar que conta parte da história daquele povo, uma festa que todo mundo gosta, uma igreja que todo mundo freqüenta, um parque, uma casa antiga...



-Minha escola tem cinqüenta anos...



-Ela é muito importante não só por ser antiga mas porque fez parte e faz parte da vida de muita gente.



Então é isto que é patrimônio cultural? Essas coisas que são importantes para toda a cidade?

-Para uma cidade ou um bairro ou uma comunidade ou um grupo de pessoas...

Elas identificam e diferenciam a cultura dos grupos e cidades como as suas coisas te identificam e te diferenciam do Paulinho e de suas colegas.

Essas suas coisas falam um pouco de você. Os bens culturais falam do grupo.



-Então é muito importante preservar o Patrimônio Cultural, né?! Se agente não preservar vamos ficar todos tristes, perdidos como eu ficaria se mamãe tirasse as minhas coisas...



- Isto mesmo menina. Preservar o patrimônio cultural é preservar a nós mesmos... Viveremos melhor se cuidarmos da nossa terra e das coisas que fizemos ou que os antigos deixaram para nós.



-Vovô...



-Sim minha neta.



-Vamos brincar na praça?



-Vamos. – Disse Vovô Carlos se levantando.



(Sempre um começo)





16



CARTILHA DE CONSERVAÇÃO


O TURISTA



O Senhor entrou na igreja olhando com admiração o belo teto.

Uma pintura colorida em azul, vermelho, branco.

Uma senhora limpava o chão de tábuas com um esfregão e o Senhor se dirigiu a ela.

- Boa tarde.



- Boa. – Respondeu a senhora parando o seu serviço.



- Linda igreja... – Disse o homem olhando ao redor.



- Ah... É sim. Mas já foi mais... Tem problemas.



- Problemas?- Perguntou o Senhor.



- Sim senhor. Vem cá para o senhor ver. – Chamou a mulher.



O Senhor a seguiu curioso. A pequena gorda senhora apontou

uma trinca na parede.



- Olha só. E tem mais lá na sacristia...



- Senhora... Como é mesmo o nome da Senhora?



- Jandira... Pode me chamar de Jandira... Sou ajudante do Padre Zé.



- Muito prazer... Meu nome é Jorge. Já notou que não sou daqui.



- É turista né?Aqui vem um monte de turista todos os dias...



- É, sou e não sou...



- Ora Seu Jorge, ou é ou não é...



- É que estou de férias sim, mas também nunca deixo de trabalhar...



-Que trabalho bom... Ficar olhando as igrejas dos outros...



Jorge riu.

- É mais ou menos isto que eu faço. Eu sou arquiteto e trabalho com Patrimônio Cultural...-Espera! Não precisa falar... Eu sei o que é isto: é esse monte de coisa que nossos avós construíram ou fizeram... A igreja por exemplo.-Isto. Toda a produção cultural de um povo – os bens culturais materiais e imateriais: festas, igrejas, praças, Músicas, causos... Tudo isto é Patrimônio Cultural e diferencia uma Cidade, comunidade ou lugar de um outro...



-Falou bonito Seu Jorge. –Disse a D. Jandira batendo palma.



- É Dona Jandira, tudo isto está relacionado com passado, memória, identidade e cidadania.



- O senhor tem certeza que é arquiteto? Tá mais para poeta...

Novamente o Senhor Jorge riu.



- Pois é Dona Jandira, eu cuido de igrejas como esta.



- Uai que bom! Então pode começar a cuidar desta que eu vou fazer muito gosto.



– Disse a Dona Jandira entregando a esfregão para o Visitante.



-Não é desse jeito não Dona Jandira... Eu faço projetos, acompanho obras de restauro e oriento...



- restauro?



- Bens culturais como essa igreja devem ser restaurados. Ou seja, As obras devem

manter as características originais do bem...



- Tá bom... Já vi que o piso de lajota que o padre quer vai ficar no querer...



- Disse a Senhora olhando o piso de tábuas.



- Isto não pode. O bonito desta igreja é o que ela tem de original e que vem seguindo anos e anos essa linda comunidade...



- Mas o senhor fala bonito eh! – O Arquiteto sorriu.



- Então tá, Seu Jorge. Já que o senhor não vai esfregar o chão, pode ajudar nestas trincas?O Arquiteto olhou detalhadamente a parede da nave, a parede da Capela Mor, o altar...

- Olha Dona Jandira, essas trincas podem ser um problema com a fundação...



- Pode ser sim.. A igreja foi fundada há tanto tempo...



- Não é esse tipo de fundação... Fundação é o alicerce, a base da igreja...- Sorriu o Senhor.



- Ah bom... O alicerce aqui é todo de pedra... Cada Pedrão...



- Pois é, o alicerce sustenta a igreja... Pode ser que esteja havendo movimentação da terra que pode está causando afundamento do alicerce. Isto acaba afetando as paredes.



- Será? – Perguntou a senhora pondo a mão no queixo.



- Pode ser.



- Mas então o que pode ser feito nestes casos? – Perguntou a Dona Jandira.



- Para evitar esse tipo de problema é preciso que não se deixe cair a Água da chuva direto no terreno da igreja. Para isto as tubulações, as calhas que recebem as águas da chuva, das torneiras ou do esgoto devem estar em bom estado, sem vazamento.

Temos que limpar periodicamente as caixas de inspeção e valas. E claro, providenciar tratamento de limpeza das peças apodrecidas por insetos...



- Não sei como é que anda isto não...- Disse a senhora pensativa.



- Mas pode ser outra coisa... O trafego de veículos também abala as paredes das casas e igrejas antigas...-ahh, Eu já cansei de falar para o Padre Zé que esse negócio de caminhão passando aqui do lado não cheirava bem...Isto tem que ser visto com calma. O Trafego de veículos pesados pode e deve ser desviado para outra área...



- Pois é e estas paredes nem de tijolos são... Quero dizer, não esses tijolos modernos...São de Adobe... Mas existem algumas de pau-a-pique...



- Mas o Senhor é danado hem? Eu pensei que o Senhor não sabia. - O arquiteto Jorge riu novamente do jeito engraçado da Senhora.É, temos paredes de pedras, de adobe, de taipa, de pau-a-pique e as mais modernas, de tijolos de alvenaria. As igrejas de taipa precisam ser revestidas de argamassa e pintura à base de cal para poderem respirar como esta aqui. – Disse ele mostrando a parede.



- Não pode colocar cimento?- Perguntou a Senhora.



- Cimento não vai deixar a parede “respirar”e vai acabar deslocando e caindo. A umidade que sobe dos alicerces podem atingir a parede e os rebocos. Isto vai gerar manchas e até deslocamento... Até vegetação pode nascer nas trincas...Também é aconselhável não furar as paredes com pregos. Você pode usar trilhos para pendurar objetos decorativos que não danificam as paredes.



- Bom saber...- Disse a Senhora abaixando a cabeça.



- Para limpar as paredes de pedra e tijolo, a senhora deve lavá-las com água e detergente neutro, evitando o excesso de água, utilizando uma escova suave para não causar desgaste na pintura.



E o chão Seu Jorge? Se não podemos trocar esse piso, como podemos

cuidar dele?

O Arquiteto deu uma boa olhada nas tábuas.



- Olha Dona Jandira, o piso não é só um lugar de pisar.



- Não!?Serve para quê mais? – Perguntou espantada a Senhora.



- Ele é decorativo, enfeita a igreja... Protege os fiéis da umidade que vem do solo...

- Decorativo... Ehhh... É bonito... E trabalhoso...



- Pois é, Dona Jandira, se não cuidar a senhora vai ter muito mais trabalho... Esse piso de tábua precisa de cuidados: Não devemos deixar acumular água ou goteiras para evitar que surjam fungos e apodrecimento da madeira. Devemos substituir as peças estragadas para não atrapalhar todo o conjunto. E claro, devemos vigiar e controlar sempre para não deixar surgir cupim e broca. Para limpar, use sempre um pano levemente umedecido ou quase seco, assim a senhora tira a poeira... Em seguida deve aplicar a cera de madeira. Depois disso a Senhora só deve usar uma vassoura de pelo macia para retira a poeira... Nada deste esfregão...



- Eta homem sabido...



- Os barrotes - as peças de madeira que sustentam o piso, precisam de cuidados constantes... A senhora ou o Padre devem olhar se não há vazamento da tubulações de água, de esgoto.O piso pode ser afetado também pelos problemas no alicerce...



- Ah sei, a tal da Fundação....



- Os pisos de ladrilho hidráulico devem ser limpos com água e sabão neutro sempre que for preciso. Pode ser usado um pano úmido em outras vezes ou encerados. Peças quebradas devem ser substituídas.



O arquiteto olhou para o alto e viu algumas mancha.



- A cobertura... O telhado, deve ser constantemente visitado. Como a senhora sabe, o telhado protege as paredes e tudo mais aqui dentro.



- Isto eu sei. Quando chove é um Deus nos acuda... Chove lá fora e aqui dentro...



- Pois é, existem telhas quebradas ou deslocada ou mesmo acumulo de sujeira e isto causa goteiras. Pode ser que o problema seja a pouca declividade do telhado...



- Pode ser mesmo... Nós nunca colocamos essa tal de “declividade”.

O Arquiteto conteve o riso.

- Declividade é ... Como posso dizer... O telhado tem pouca curvatura e a água se acumula e acaba descendo para dentro da igreja. Agora, as calhas também precisam estar limpas para deixar a água descer...



- É... Se o Senhor diz...



- Mas tem as esquadrias...



- Tem não Seu Jorge... Só em junho... – Disse a Senhora balançando o dedo.



- Não é Quadrilha... Eu disse Esquadrias...



- Ahhh bom! ...O que é isto?- Perguntou a senhora.



- São as portas e janelas...



- Que nome chique para porta e janela...



- Pois é, as portas e janelas sofrem muito com as chuvas e com o Sol...Com os cupins e brocas... E se não cuidarmos constantemente o problema só piora. Também não se pode trocar janelas antigas por modernas...

Não em bens culturais como essa igreja, protegidos pelos órgãos de preservação.



- Mas então como é que fica. Se estraga a janela não pode trocar?



- Pode sim. Quando não tem mais jeito substitui-se a janela por modelo parecido, de preferência construído com madeira idêntica às outras janelas.



- E tem que trocar os vidros quebrados...



- Isto mesmo Dona Jandira. Quebrou, trocou... Assim não entra água e não apodrece a madeira. No caso das ferragens das janelas, é necessário lubrificar de quando em quando e retirar o excesso de tinta que impede a janela de fechar direito.Peças enferrujadas devem ser lixadas...



- E o forro? Sei que depois que arrumarmos o telhados vamos ter que reformar...



- Restaurar. O Forro tem que passar por uma restauração feita por um especialista.

- Aqui tem. O Manuel sambista. Ele faz tudo para a Escola de Samba... Restaurou

a imagem de Nossa Senhora que ficou lindinha... Até ruge ele pôs...



- Não, Dona Jandira, restauração é coisa séria, tem que chamar um profissional que estudou para isto. – Disse o Arquiteto horrorizado procurando a imagem de Nossa Senhora.Dona Jandira, as imagens e o altar devem ser limpos adequadamente. A senhora deve olhar se tem sujeira. Se o pó está preso à imagem... Deve olhar se tem ataque de insetos se há furos... Olhar se a pintura ou douramento está desprendendo... Se existem partes soltas...Muitas vezes o local onde a peça está não é adequado. O local deve ser limpo... Sem pó nos pisos e paredes...

No caso de pinturas na parede a senhora não deve encostar móveis nem elementos que possam desgastar ou danificá-la. Não furar com pregos ou coisa parecida para pendurar objetos; Evitar iluminação direta sobre as pinturas;Não fixar avisos e cartazes diretamente sobre as pinturas;Orientar os fiéis para não tocar as pinturas.

Para limpar as imagens e os altares a senhora deve usar uma trincha

macia, limpa e seca. Tudo isto com muito cuidado. Removendo sempre os fungos porque eles podem se espalhar contaminando as outras imagens e até a senhora.



- Deus me livre! – Se benzeu a Senhora assustada.



- Olha Dona Jandira, para carregar uma peça destas a Senhora tem que usar as duas mãos...E luvas....



- Ai que chique...



- E com delicadeza... Suave mas com firmeza...Dona Jandira, o mais importante é a conservação que nós chamamos de “Preventiva”. Ou seja, devemos cuidar para impedir os danos e a deterioração. Há coisas simples que podem ser feitas; acondicionar o lixo dentro de sacos plásticos e colocá-lo na rua na hora do lixeiro passar... Olhar periodicamente as caixas de papelão ou caixotes que estão atrás de armários, gavetas para ver se tem roedores...Evitar acumulo de entulhos...Colocar telas metálicas nas aberturas dos telhados ou telas de nylon em beirais por causa dos pombos...Os ninhos destes devem ser removidos...- Continuou o Arquiteto.



- Ai meu Deus... Mais trabalho para mim...

-Para a Senhora sozinha não... A igreja é de todos e toda a comunidade deve ser envolvida para cuidar sempre deste patrimônio maravilhoso que vocês possuem. Vigie sempre...



- Vamos vigiar sim...



- Agora Dona Jandira, sempre que o problema for além das possibilidades da comunidade, chamem um técnico especialista.



- Pois é Seu Jorge, que tal o senhor parar essas suas férias...?



O arquiteto sorriu.

- Vou pensar...- ajoelhou diante do altar e começou a orar.

FIM

17



APENAS UM TIJOLO



No vazio do lote ocupado por matos, lixos e ratos, um tijolo perdido me lembra o passado...

O sobrado parece ressurgir do nada na tela de minha mente

e quase ouço as vozes da elite da terra em seus saraus restritos.



Nunca fui convidado porque não existia ainda para esse mundo de contrastes. Meu pai e minha mãe também não...



Mas a casa “bacana”nos fascinava pela beleza... Pelo que significava: beleza, riqueza, poder...



Depois o tempo, esse devastador de utopias, descorou sua tinta. Envelheceu seus moradores. Desfez a magia...

As massas em relevo de suas fachadas caíram deixando à mostra os tijolos comuns a todas as casas.



O telhado que cobria a riqueza fez água...



Por fim, o pedaço da história se foi...

A cidade continuou o seu caminho com a memória empobrecida...



Apenas um tijolo perdido me lembra o passado entre matos lixos e ratos.



FIM








18



A CASA INVISÍVEL



Quando surgiu era linda... Para todos.

A sensação...

A casa mais importante por que importante eram os que a habitavam.

Viu saraus. Viu tramas e dramas.

Viu romances nascerem e se desfazerem...

Viu sonhos desfeitos...

Riquezas desfeitas... Nascimentos, doenças e mortes...

Viu movimentos, progressos, decadência...

E era vista: centro de atração.

Admirada.

Respeitada...

Amada... E odiada.

Depois desprezada, esquecida...

INVISÍVEL.

As casas vizinhas eram demolidas, substituídas.

Sobressaiam, mudavam, cresciam...

Ela... Invisível.

A rua mudava. Se poluía... A cidade crescia.

Ela:invisível.

O tempo que muda tudo transformou a casa linda em feia.

Maltratada, quebrada, abandonada, vazia.

Um dia alguém a viu ali perdida entre prédios visíveis.

Trocou suas janelas e portas,

E telhas,

E reboco.

E lhe pintou as paredes de cores vivas, berrantes, chocantes:

Um vermelho vivo e detalhes em dourado...

E a casa invisível apareceu de repente em seu esplendor.

Assustou os transeuntes que antes não a viam...

A viram então.

E curiosos a descobriram.

E sua história.

E sua glória.

Que era parte da história e da glória

da rua...

Da cidade...

De todos...



FIM







19



MINHA ESCOLA



João olhava em volta curioso com a nova escola.

O espanto começou logo na chegada quando viu a fachada do prédio.

Não parecia nada com a sua escola anterior.

A nova escola era antiga... Talvez vinte anos, arriscou ele.

A sala onde estava era grande e o teto era bem alto.

- Oi ! – Disse um menino do lado chamando-lhe a atenção.



- Você é novo aqui né? – Perguntou o menino.



- Sou.





- Eu notei. Meu nome é Maurício, estudo aqui há dois anos.



- O meu é João... Essa escola é diferente...



- É antiga...Muito antiga. – exclamou Maurício mostrando o corredor...



- Quantos anos? Uns vinte? – Perguntou João.



- Vinte que nada. – Riu Maurício.



- Essa escola tem 84 anos.



- Tudo isso?



- É... bem antiga... Meu avô estudou aqui...



- Nossa!



- Sabe porque chama Olegário Maciel?



- É o nome de um professor? – Perguntou João curioso.



- Não... É o nome de um governador de Minas Gerais.



O Dr. Olegário Maciel nasceu em Bom Despacho em 8 de outubro de 1855...



- Nossa! Como você é sabido...



- Que nada li tudo isso hoje cedo. – Riu Maurício mostrando a pesquisa que fizera. João também riu.



- Pois é João, o tal Olegário Maciel, foi um político importante... Foi deputado estadual e federal e foi vice-presidente do Estado de Minas de 1922 a 1924... Na época os governadores e vice-governadores eram chamados de presidentes e vice-presidentes...

- Você disse que ele foi governador...Quero dizer presidente do Estado...



- É, ele foi presidente do Estado de Minas em 1924 substituindo o presidente da época e depois em 1930. Sei que morreu três anos depois, em 1933.



- Hum, interessante... E aí, quando criaram a Escola deram o nome dele?- Perguntou João.



- A escola foi inaugurada em 15 de maio de 1925, já com esse nome...



- Maurício tirou uns papeis da pasta e leu:

“o grupo escolar Olegário Maciel foi criado pelo Decreto número 6658 de agosto de 1924”...Eu achei isso na biblioteca da escola.



- Nossa!



- Nossa mesmo... O prédio tem estilo... Deixa eu olhar no texto... – Disse Maurício procurando nas folhas.



- Aqui... “Eclético”... É uma mistura de estilos arquitetônicos... É o que diz aqui...



- Para a idade que tem está bem conservado...- observou João.



- É mesmo. Mas já sofreu intervenções no passado: 1958, 1974, 1986 e uma última nos anos 2000. Devido a sua importância foi tombado...



- TOMBADO! – Assustou João.



- Tombamento é uma proteção legal. Quando um prédio ou até mesmo um objeto é importante para a comunidade, ele é reconhecido como patrimônio cultural através do instituto do tombamento.- Explicou o aluno antigo.



- Que alívio... Mas então o que acontece quando um bem é tombado?



- Ele não pode ser destruído... Tem que ser conservado do jeito que foi construído e as obras que sofrer devem manter as suas... Como se diz... “Características originais”.



- Por quê? – perguntou João.



- Ora... Porque a Escola é importante para todos nós... Ela é um marco da nossa cidade e “fala” muito sobre o que somos...



- Maurício, mas conservar tudo isso é bem difícil né?



- É, mas se todo mundo ajudar a conservar fica bem mais fácil.



- Disse Maurício.



- Mas ajudar como?



- Não pichando ou rabiscando as paredes das fachadas ou do interior do prédio...

Afastando a carteira da parede para não estragar o reboco...



- Não jogar papel no chão...- Completou João.



- Isso também é importante... Conservar as Carteiras... Os vidros, as portas...



- Os livros da biblioteca... – completou novamente João.



- Também...Devemos lembrar que, por essas escadas, essas salas, centenas de pessoas passaram, estudaram aprenderam, cresceram, se formaram e se fizeram homens...É um patrimônio vivo e cheio de histórias...



- Será que tem fantasma? – Perguntou João assustado. Maurício riu.



- Se tem é tudo gente boa... Espíritos do lugar...



- E do ensino...



- Você falou bem, João... Não é só o prédio que é interessante e importante.

Existem muitos objetos antigos guardados aqui que contam a história do ensino: troféus, instrumentos musicais do tempo que havia aulas de música... Diários de classe bem antigos... E Fotos que mostram a escola em várias épocas... Isso aqui respira passado e sabedoria...



-Profundo... – exclamou João balançando a cabeça.



Maurício riu.



- É... E nós, João, somos frutos do passado de várias formas: nossa forma física vem do passado... O modo como vestimos, falamos, agimos vem do passado. O nosso conhecimento é o conhecimento acumulado por séculos e passado constantemente aos novos membros do nosso grupo...

A escola tem esse papel importante e principalmente uma escola como essa que é tão antiga.

Preservar os marcos da nossa história e do nosso passado é preservar a nós mesmo...

É preservar a nossa dignidade e identidade.



- Acho que vou gostar muito daqui... – Exclamou João olhando para os lados.

A professora entrou fechando a porta com cuidado.

Maurício sorriu para o aluno novato.



- Acho que vai... SEJA BEM-VINDO



Fim ou o começo...



20



LEMBRANÇAS



- Vocês se lembram da inauguração da Fonte Luminosa? – Perguntou o Sr. Pedro aos dois companheiros sentados a seu lado no banco da praça.



- Foi há trinta anos...- Lembrou o Sr. Carlos coçando o queixo.



- Festa linda... O prefeito era o Dr. Manuel...- Completou o Sr. João.



- Não, você está enganado. O prefeito da época era o José Maria. O Dr. Manoel assumiu dois anos depois. – Corrigiu o Sr. Pedro.



- Ah... Agora estou me lembrando... O Dr. Manuel estava no palanque também. E a Rita... – Concordou o Sr. João.



- A D. Rita? A D. Rita estava no palanque? – Perguntou o Sr. Carlos.



- Estava... Linda em seu vestido azul... Começamos a namorar um mês depois...

- Respondeu o Sr. João.



- O José Maria falou do progresso que chegava à cidade... Prometeu restaurar a igreja ... Ficou na promessa... – Lamentou o Sr. Carlos.



- Prometeu? Não me lembro... Lembro que durante o discurso um pombo assustado com os fogos de artifício arrancou o chapéu da sua cabeça. – Falou o Sr. Pedro.



- Foi? –Perguntou o Sr. João.



- Foi sim, eu morri de rir. – Completou o Sr. Carlos.



- Naquele dia o Antônio da padaria bebeu muito na barraca da Mariinha. Bateu o carro no poste da esquina. – Falou o Sr. Pedro.



- Foi no poste? Eu podia jurar que foi no muro da prefeitura... – Perguntou o Sr. João.



- Quem bateu no muro foi o Jorge, no casamento do Júlio em 1972. – Consertou o Sr. Carlos.



- Outra festa linda... – Lembrou o Sr. Pedro.



- Mas a Fonte... Que beleza aquelas águas coloridas... – Falou o Sr. João voltando ao assunto.



- Olha só como está... Já faz uns quatro anos que não funciona... – Lamentou o Sr. Carlos apontando para a Fonte.



- Mais... Seis anos... – Corrigiu o Sr. João.





- O prefeito atual... Como é o nome dele? – Perguntou o Sr. Carlos.



- Jaime... Por sinal filho do José Maria... – Respondeu o Sr. Pedro.



- Pois é, ele prometeu restaurar a Fonte.



- Promessas... – Lamentou o Sr. Carlos.



- Mas era linda... – Admirou o Sr. João.



- Era sim... – Concordou o Sr. Carlos. O Sr. Pedro balançou a cabeça concordando.



- Eu sei... Eu me lembro.



(O FIM)

























21

UM TIJOLO NA PAREDE





- Boa tarde. – Disse o homem sentando na cadeira perto da mesa do Conselheiro Jorge.



- Boa Tarde senhor Mauro. – Respondeu Jorge.



-Eu recebi a notificação... Diz que minha casa está tombada...



-Isso mesmo... – Concordou Jorge.



-Quer dizer que foi desapropriada? – Perguntou Mauro.



-Não. Quer dizer que ela agora não pode ser demolida, modificada...As obras precisam ser aprovadas pelo Conselho Municipal do Patrimônio Cultural...



-Eu tenho quinze dias para concordar?



-O senhor pode concordar ou pode impugnar...



-Impugnar?



-É... O senhor pode discordar.



-O que tenho que fazer para discordar? Para impugnar? – Perguntou o homem.



-O senhor tem que escrever as razões porque não concorda com o tombamento.



-Vai adiantar?



-Se o senhor estiver certo, vai.



-O que é o certo?



-Bem senhor Mauro, tombamos a casa porque é uma das primeiras da cidade. O senhor sabe, tem quase duzentos anos...



-Eu sei... Mas o senhor também sabe que ela é minha...



-Sabemos... Por isto te notificamos.



-É, notificaram...



-A casa é importante para a cidade, para a comunidade...

-É importante para minha família... É a herança dos meus filhos.



-O senhor disse tudo. Ela é importante para todos nós, sua família e toda a cidade.



-O que ganhamos com o tombamento?

-Isenção do IPTU.



-O que mais?



-Podem recorrer ao Fundo de Preservação do Patrimônio Cultural se precisarem realizar alguma obra...



-Mas o senhor disse que eu não posso fazer obras...



-Se for aprovada pelo Conselho, pode...



-A casa era do meu pai. Comprou, reformou, cuidou... Era importante para ele...Que eu saiba ninguém da comunidade ajudou a cuidar...



-Eu sei senhor Mauro, as coisas mudam. A casa foi cuidada pelo seu pai, mas antes dele outros cuidaram e agora o senhor. Hoje a casa importa muito para a memória da cidade...Deve ser cuidada por todos nós.



-Tenho seis filhos, onde eles vão morar?



-Ora senhor Mauro, ela pertencerá a todos eles. Um deles vai ocupar a casa...



- Existem prédios perto da casa... Um prédio poderia servir a todos nós...



-Infelizmente com a casa tombada isto não será possível.



-Mas ela é minha...



-É sim.



-Se é minha posso fazer o que quiser...



-É sua mas é tombada... Pertence à História da cidade e importa a todos. O senhor acha justo que parte da memória da cidade seja destruída?



-O senhor acha justo que os meus filhos percam a única herança que vão ter?



-O senhor vai impugnar?



-Vou..Sei que não vai adiantar mas vou...



-Por que o senhor acha que não vai adiantar? – Perguntou Jorge.





-O senhor disse: a casa tem duzentos anos... É antiga,é importante para a comunidade...

 Respondeu o Senhor Mauro abaixando a cabeça.





-Senhor Mauro, tudo que somos, que fazemos, que cremos, que acreditamos é parte de uma construção...Somos como a casa, que foi um tijolo, uma parede...Cada telha, cada reboco complementa a casa... Cada elemento humano que a povoou, a complementa... Assim somos nós. Somos formados pelas coisas do passado, pelos lugares, pelo que nos ensinaram, pelas músicas que ouvimos, pelas alegrias e tristezas individuais e coletivas... Somos também construídos no presente e fazemos diferença para o futuro, que será pior ou melhor... Tudo depende de nós...



Dependo do senhor e o senhor depende de mim. Somos elos de uma mesma corrente que puxa a humanidade para frente. Minha sobrevivência depende da sua e a sua depende da minha. Somos indivíduos mas também somos plurais, coletivos...

O que acontece se o senhor retirar um tijolo de uma das paredes da casa?



– A parede vai rachar e pode cair. – Respondeu o Senhor Mauro passando a mão na barba.



-O senhor vai impugnar?– Perguntou novamente o Conselheiro.



-Vou... Sei que não vai adiantar mas vou. – Respondeu o senhor Mauro se levantando.



Apertou a mão do Conselheiro Jorge e se encaminhou para a porta.Antes de sair da sala deu uma última olhada para o Conselheiro.



-Senhor Jorge...



-Sim senhor Mauro.



-Eu vou cuidar bem do tijolo...



O Conselheiro não disse nada. Apenas sorriu.


(Sempre um começo)

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